UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
JOÃO WILAME COELHO GRAÇA
ASPECTOS HISTÓRICO-EVOLUTIVOS DO JUSNATURALISMO:
DA GRÉCIA ANTIGA A TOMÁS DE AQUINO
Fortaleza-Ceará
2011
JOÃO WILAME COELHO GRAÇA
ASPECTOS HISTÓRICO-EVOLUTIVOS DO JUSNATURALISMO:
DA GRÉCIA ANTIGA A TOMÁS DE AQUINO
Dissertação apresentada à banca examinadora do Programa de Pós-Graduação em Filosofia (Mestrado) do Instituto de Cultura e Arte (ICA), da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Orientando: João Wilame Coelho Graça
Orientador: Prof. Dr. José Carlos Silva de Almeida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Federal do Ceará
Biblioteca de Ciências Humanas G753a
Graça, João Wilame Coelho.
Aspectos histórico-evolutivos do jusnaturalismo : da Grécia antiga a Tomás de Aquino / João Wilame Coelho Graça. – 2011. 73 f. , enc. ; 30 cm.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Instituto de Cultura e Arte, Departamento de Filosofia,
Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Fortaleza, 2011.
Área de Concentração: História da filosofia.
Orientação: Prof. Dr. José Carlos Silva de Almeida.
1.Aristóteles – Crítica e interpretação. 2.Tomás,de Aquino,Santo,1225?-1274 – Crítica e interpretação. 3.Direito natural – Filosofia. 4.Concórdia – Filosofia. 5.Direito Constitucional – Filosofia. 6.Direito internacional público – Filosofia. Título.
CDD 340.112 Fortaleza-Ceará 2011
DEDICATÓRIA
Dedico esta dissertação ao trabalho de amor,
caridade e piedade, realizado pelos cristãos da
Diocese Ortodoxa conduzida por Dom Kyrillos.
AGRADECIMENTOS
Quero agradecer ao conjunto dos que compõem a digna e gloriosa Universidade Federal do Ceará, aos professores e funcionários do valoroso Curso em Filosofia desta universidade, em seus vários níveis.
Agradeço, especial e sinceramente, o apoio que recebi de:
Meu orientador, José Carlos Silva de Almeida.
Dos professores: Evanildo Costeski, Átila Amaral Brilhante e Odílio Alves Aguiar.
E da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
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Se não voltarmos logo à idéia filosófica do Direito Natural para pensar o Direito Positivo sob suas bases, todas as conquistas históricas serão perdidas, tornando-se crônica a crise moral da sociedade ocidental e, particularmente, da brasileira. Eis o desafio que se põe aos novos estudantes e profissionais do direito, os quais decidirão que mundo raiará no amanhã.
Glauco Magalhães Filho
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RESUMO
É no pensamento de Santo Tomás que nasce a marca principal do jusnaturalismo: a contribuição histórica cedida em favor do reconhecimento dos direitos fundamentais do indivíduo. Sua tese jusnaturalista, exposta na obra “Suma Teológica”, supera todas as formulações anteriores sobre o tema. Na primeira versão da lei natural, que se formou na Grécia arcaica, constava como característica básica a defesa de um bem da pólis, identificado com a idéia de isonomia entre os cidadãos e materializado no fenômeno que se denominou concórdia. Tal paradigma jusnaturalista atinge seu ápice em Aristóteles, com sua concepção de lei política ou constitucional. Interpretando sob nova perspectiva o conceitual aristotélico, Aquino dá ao jusnaturalismo uma forma sistemática, englobando, neste, as formulações sobre lei eterna, lei natural e lei humana. Nesta, última, está contido o que ele chama de direito natural ou direito das gentes, conceito por meio do qual, o Aquinate, expõe o legado maior do jusnaturalismo, a mencionada defesa dos direitos e garantias básicas da pessoa.
PALAVRAS CHAVE: Jusnaturalismo – Concórdia – Aristóteles – Constituição – Aquino – Direito das gentes
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ABSTRACT
The jusnaturalism receives of St. Thomas its main feature: a historical contribution in favor of recognizing the fundamental rights of the individual. His thesis jusnaturalist, exposed in the work "Summa Theologica," surpasses all previous formulations on the subject. In the first version of natural law, which was formed in Ancient Greece, was included as a basic characteristic the defense of the polis, identified with the idea of equality between citizens and embodied in the phenomenon that is called: concord. This paradigm jusnaturalist reaches its climax in Aristotle with his conception of political or constitutional law. Making an interpretation in a new light the concepts of Aristotle, Aquinas makes the natural law systematic, covering this system the formulations on this: eternal law, natural law and human law. In this last is contained in what he calls the natural law or law of nations, a concept with which, Aquinas, exposes the greater legacy of natural law, the aforementioned rights and basic guarantees of the person.
KEY WORDS: Jusnaturalism - Concord - Aristotle - Constitution – Aquinas - Law of nations
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................................................................... 08
1 A GÊNESE DA LEI NATURAL. SOBRE A PÓLIS, A ISONOMIA E A CONCÓRDIA............... 12
1.1 A
polis e o novo paradigma de sociedade.............................................. 12
1.2 A idéia de ordem universal.................................................................... 13
1.3 O conceito inaugural de jusnaturalismo. Sobre isonomia e a concórdia 16
1.4 A questão do nomos e do legalismo....................................................... 21
1.5 A lei natural em Aristóteles. Sobre a lei política ou constitucional....... 23
1.5.1 Da concórdia à constituição............................................................. 23
1.5.2 A lei natural é a norma constitucional............................................. 24
1.5.3 Proteção ao bem coletivo. A defesa da isonomia............................ 28
2 ELEMENTOS SOBRE A TRANSIÇÃO DO JUSNATURALISMO GREGO
AO TOMISTA....................................................................................................... 31
2.1 Sobre a questão da natureza humana..................................................... 31
2.2 Platão e a primazia da virtude ente a técnica......................................... 34
2.3 A razão em Aristóteles. Pontos sobre a transição de Aristóteles a
Santo Tomás................................................................................................. 38
3 O JUSNATURALISMO EM TOMÁS DE AQUINO........................................ 48
3.1 As linhas gerais do jusnaturalismo tomista............................................ 48
3.2 Sobre a idéia de Lei natural em Santo Tomás........................................ 50
3.3 O direito natural..................................................................................... 56
3.3.1 A lei humana como fruto da lei natural........................................... 56
3.3.2 A instituição da lei humana............................................................. 58
3.3.3 Sobre a ilegitimidade da lei injusta................................................. 61
3.3.4 O direito das gentes......................................................................... 63
CONCLUSÃO....................................................................................................... 67
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................. 70
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INTRODUÇÃO
Nosso trabalho trata sobre o escopo essencial do jusnaturalismo, esta vertente da filosofia do direito tem como divisa principal a defesa de direitos considerados inerentes à pessoa humana. Na verdade o jusnaturalismo contribuiu decisivamente para o próprio reconhecimento destes direitos enquanto inatos ao homem. Em nossa linha de análise consideramos o pensamento tomista como central para a formação desta característica básica, acima aludida, que vincula o jusnaturalismo às conquistas no campo dos direitos fundamentais do homem. Nosso trabalho, portanto, pretende investigar de que modo esta idéia foi influenciada pela tese de direito natural de Santo Tomás. Para investigar o jusnaturalismo e também o pensamento do Doutor Angélico é imprescindível estudar os primórdios da lei natural em seu berço histórico: a Grécia do período clássico. No primeiro capítulo, portanto, analisaremos o jusnaturalismo nascido na Grécia arcaica. Sabemos que lá, a idéia de que a ordem social da pólis era um desígnio da própria natureza embasava a tese de lei natural. A idéia de concórdia centralizava o jusnaturalismo neste período. Tratava-se de um acordo aglutinador dos diversos setores sociais da cidade. Esta concórdia tinha por espírito a isonomia ou igualdade geométrica. O nomos ou leis da pólis materializavam este acordo entre os cidadãos. Podemos dizer, em suma, que a lei natural nasce como o intuito de refutar o poder tirânico de um oligarca ou de uma classe sobre os demais setores da cidade. Pela concórdia a lei deve ser maior que todos. A lei é maior para que todos, seguindo a lei, estejam em equilíbrio, logo a primeira versão da lei natural trata do bem coletivo. A Lei natural é uma lei do cosmos que traz harmonia a pólis, sobrepondo-se a todos ela garante o bem coletivo. É assim que surge no período arcaico a lei natural. Do período arcaico até sua versão principal, pela qual ficou consagrado na história, o jusnaturalismo abandona a ênfase ao bem coletivo para enfocar o direito inato a cada indivíduo. Na primeira idéia o cosmos se repetia na harmonia da cidade, posteriormente é o homem que se torna o objeto central para a lei natural. A mesma ganha uma dimensão mais que cosmológica, concebendo o homem dentro de uma ótica universalista. A natureza, agora em foco, não é mais a da pólis, mas, a humana com seus direitos inerentes. Nas duas vertentes jusnaturalistas há uma essência em comum: a idéia de que existe uma lei maior e transcendente que garante um “bem fundamental e inato”.
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Na primeira versão este bem se identifica com um bem coletivo, e na segunda com um bem do indivíduo. É a partir deste “bem fundamental a ser protegido” que surge a idéia de restrição ao poder. Então o jusnaturalismo em regra se expressa como uma limitação ao exercício do poder. Esta limitação sobrepuja os próprios formatos de governo ou Estado, pois independente destas formas o exercício do poder se vê vinculado a limites universais. Exemplificando, podemos falar da democracia. Neste sistema impera o poder da maioria, porém, esta maioria não é livre para instituir normas que venham a transgredir a lei natural. Mesmo a maioria não pode ferir os princípios da lei natural, já que estes princípios reduzem o poder do governo e do Estado. Para perceber a evolução do jusnaturalismo do período arcaico até sua versão contemporânea temos que entender a lei natural tomista, pois é aqui que nasce o germe fundamental do que será o jusnaturalismo em sua versão atual. A obra de Santo Tomás é fundamental para a virada de paradigma no jusnaturalismo. Sua tese de direito natural pode ser decifrada se seguirmos o fio condutor que começa na obra de um autor que muito o influenciou e ofereceu elementos para seu labor filosófico que foi Aristóteles. O Estagirita não rompe com a idéia básica de lei natural dos arcaicos, de que a pólis é maior e anterior que os indivíduos, entretanto aperfeiçoa este conceito de lei natural. Ele elabora sua tese de lei constitucional ou política, encontrada principalmente nas obras: “A Política” e “Ética a Nicômaco”, resolvendo um problema herdado dos arcaicos que era a questão do legalismo em torno do nomos. É Aristóteles que sintetiza o conteúdo da lei natural. Com os arcaicos o nomos toma uma proporção de difícil sustentação, pois todas as leis eram defendidas como primordiais. Aristóteles ensina que não é a lei em si que é essencial, mas que há uma determinada lei que o é. Esta é a lei natural ou lei política, ou ainda lei constitucional a qual se refere à função básica de divisão do poder político entre os cidadãos da pólis. Esta tese de Aristóteles gravará toda a história do jusnaturalismo, pois a lei natural trata da lei essencial: a lei política. Aristóteles prioriza a questão do poder político na cidade. Ele avança na teoria legislativa e constitucional conseguindo equacionar a bandeira política da isonomia grega dentro de uma valorosa tese normativa em defesa do bem coletivo, mas fundamentalmente ele continua filiado a tese arcaica de que a pólis é o centro da vida. Outro ponto de grande importância é que os gregos trariam a pauta das discussões um elemento relevante para o afloramento, em período posterior, da tese tomista sobre o valor do indivíduo: a questão da racionalidade.
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No segundo capítulo, observaremos que na transição entre o primeiro
modelo grego de jusnaturalismo voltado para a defesa do bem coletivo e o modelo
tomista voltado para a defesa do bem da pessoa, a discussão sobre a natureza humana e
a razão ocupam lugar de destaque. A razão é um elemento fortemente debatido por
Platão e Aristóteles, e principalmente deste último, Santo Tomás irá tomar conceitos
sobre os quais fundamentará suas posições. Nossa hipótese é que Aquino interprete em
uma nova ótica a tese Aristotélica da razão prática e que, concebendo esta razão como
sede da lei natural no indivíduo, entenda que este seja o centro da vida social. Na virada
de paradigma efetuada pelo Aquinate é a natureza humana e não mais a natureza da
cidade que está em pauta. Dado que Aristóteles também imaginava a natureza humana
como racional, se diferenciava de Santo Tomás, já que não era desta idéia de natureza
que provinha seu jusnaturalismo. Ele colhia sua lei natural do próprio costume da cidade
e para ele o costume não surgia do homem.
No terceiro capítulo abordaremos a questão de que, em Aquino, é a cidade
que irá se declinar ante o homem, pois, em sua obra “Suma Teológica”, a lei natural
migrará da proteção do bem coletivo ou da
pólis para a garantia do bem do homem. A
sede dos princípios da lei natural no homem é a razão. Se em Aristóteles a lei natural
nascia do costume da
pólis, em Aquino o inverso ocorre, pois o costume é que deriva da
lei natural. E, este costume precedente a lei natural ou “sindérese” é fonte da lei, mas
para que tal lei tenha valor jurídico precisa ser promulgado. Depois de instituído o
direito passa a ter força coativa e se torna direito natural. A essência do jusnaturalismo
enquanto lei transcendente que protege um bem da vida é preservada por Santo Tomás
em sua formulação de direito das gentes, que é, em sua concepção, o direito natural
propriamente dito. Este direito é um primeiro ensaio do que seria posteriormente o
reconhecimento dos direitos do homem. Direito que os diversos povos reconhecem e
que não precisam de instituição especial, pois já a própria natureza o promulgou. É,
portanto inerente ao homem ser sujeito deste direito. E é neste ponto que vemos a nítida
mudança de paradigma efetuada por Aquino quanto ao sentido do jusnaturalismo. O
bem a ser defendido se volta agora para o homem e não mais para a isonomia da
pólis.
É o próprio Estado que se vê agora limitado em suas prerrogativas ao ter que respeitar
direitos inatos ao homem. O jusnaturalismo em Aquino toma assim uma face bem mais
cosmopolita e mesmo universalista.
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É por este roteiro que iremos caminhar em nossa dissertação, a fim de, como
já dissemos, encontrar dentre o pensamento jusfilosófico grego e tomista a gênese desta
característica maior do jusnaturalismo que é a defesa dos direitos próprios ao homem.
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1 A GÊNESE DA LEI NATURAL. SOBRE A
PÓLIS, A ISONOMIA E A
CONCÓRDIA
1.1 A
pólis e o novo paradigma de sociedade
Nascida no momento histórico de surgimento da
pólis grega a idéia de lei
natural se insere em um contexto de profunda reestruturação de todo o imaginário social
da Grécia. Vejamos neste tópico alguns elementos deste processo de transição, deste
momento de verdadeira reinvenção social, “O aparecimento da polis constitui, na
história do pensamento grego, um acontecimento decisivo [...] desde seu advento, que
se pode situar entre os séculos VIII e VII, marca um começo, uma verdadeira invenção;
por ela, a vida social e as relações entre os homens tomam uma força nova, cuja
originalidade será plenamente sentida pelos gregos” (VERNANT, 1998, p. 41). Todo o
imaginário grego sofre influência deste movimento. Seus costumes e suas práticas
sociais são modificados neste momento pela “extraordinária preeminência da palavra
sobre todos os outros instrumentos do poder. Torna-se o instrumento político por
excelência, a chave de toda autoridade no Estado o meio de comando e de domínio
sobre outrem” (idem, p. 41). Neste novo modelo de sociedade o “poder da palavra – de
que os gregos farão uma divindade:
Peithó, a força de persuasão – lembra a eficácia das
palavras e das fórmulas em certos rituais religiosos, ou o valor atribuído aos “ditos” do
rei” (ibidem, p. 41)
. Nesta transição o elemento eminentemente humano centraliza os
ritos sociais. Este é um novo paradigma que se abre dentro da cultura grega.
A palavra não é mais o termo ritual, a fórmula justa, mas o debate
contraditório, a discussão, a argumentação. Supõe um público ao qual
ela se dirige como a um juiz que decide em última instância, de mãos
erguidas, entre os dois partidos que lhe são apresentados; é essa
escolha puramente humana, que mede a força de persuasão respectiva
dos dois discursos, assegurando a vitória de um dos oradores sobre seu
adversário. (ibidem, p. 41).
Superando, a palavra, o sentido de mera “declaração” passa a ter um valor
de argumentação e convencimento. Este discurso deve incluir mais que a sentença
simplista e descompromissada. Tem que convencer seu interlocutor. Surge então o
diálogo político. Esta mudança acaba por chamar a coletividade para a participação em
temas que antes estavam restritos a uma minoria. É um verdadeiro processo de inclusão
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social de atores que antes estavam à margem do contexto social. Eis aqui claramente
demarcada a característica política da Grécia. A forte marca de personalidade que volta
a atenção grega para a praça. É em coletividade que a vida e as conversações
acontecem. Os que antes eram nada mais que figurantes agora terão papel decisivo nas
discussões das idéias e temas antes fechados em círculos dogmáticos.
Uma segunda característica da polis é o cunho de plena publicidade
dada às manifestações mais importantes da vida social [...] A cultura
grega constitui-se, dando a um círculo sempre mais amplo –
finalmente ao demos todo – o acesso ao mundo espiritual, reservado
no início a uma aristocracia de caráter guerreiro e sacerdotal
(VERNANT, 1998, p. 42).
Este é um comportamento inovador. A essência da comunidade é
modificada. As relações sociais não têm mais a passividade e a aceitação que antes eram
a marca dos ritos sociais e religiosos. Seria este um momento decisivo para a cultura
ocidental? Com certeza vemos aí um novo paradigma de comportamento. Este novo
paradigma social traz consigo mudanças conceituais profundas que irão nortear o
pensamento grego. Dentre os conceitos que surgiram neste contexto está o de lei
natural. Para compreender este, outros três têm influência decisiva em nosso estudo: os
conceitos de ordem universal, isonomia e concórdia.
1.2 A idéia de ordem universal
O processo de surgimento da
pólis, que incidiu nesta abertura ao mundo
espiritual acima relatada, trazida pelo novo paradigma social grego, cotejará espaço para
o aparecimento de teses que trazem novas idéias, explicações e visões de mundo. Esta
transformação social deixa espaço à multiplicação de grupos que traziam preocupações
em conhecer e decifrar o mundo e sua natureza. Vinculado a isto é que se esboçará a
idéia de ordem universal. Tais grupos se situam “à margem da cidade e ao lado do culto
público, associações fundadas secretamente. Seitas, confrarias e mistérios”
(VERNANT, 1998, p. 46). Concomitantes a estas associações e mesmo relacionadas a
estas, “as pesquisas dos primeiros sábios iam retomar as preocupações das seitas a ponto
de confundirem às vezes com elas.” (idem, p. 47). É difícil traçar um liame que faça a
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distinção entre os primeiros sábios e filósofos em relação a estas seitas. Deste modo,
vemos duas características distintas se conjugarem: a vontade de divulgar o
conhecimento e ao mesmo tempo a idéia de que o grande público não tem capacidade
de receber este conhecimento. A “primeira sabedoria constitui-se assim numa espécie de
contradição em que se exprime sua natureza paradoxal: entrega ao público um saber que
proclama ao mesmo tempo inacessível à maior parte.” (ibidem, p. 48).
Um exemplo destas novas idéias que passam a centralizar o pensamento
grego é a idéia de que existe no cosmos uma ordem. Na verdade o termo
cosmos já
nasce trazendo em si a idéia de ordem, como veremos a seguir. Este ponto é de
insofismável valor à tese jusnaturalista. O surgimento do conceito de lei natural não por
acaso coincide com o instante de nascimento da tese de ordem universal no período
arcaico. Na verdade uma idéia surge vinculada à outra. Vamos compreender este
conceito de ordem universal encontrando primeiro um conceito anterior, o de “Caos”.
Na Grécia antiga o mito da criação, que retrata o nascimento dos deuses “Caos” e
“Eros”, vem de um passado remoto, mas é de Hesíodo o primeiro escrito, que chegou
até nós, que relata tal mito.
Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também Terra de amplo seio,
de todos sede irresvalável sempre, dos imortais que têm a cabeça do
Olimpo nevado, e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,
e Eros: o mais belo entre Deuses imortais, solta - membros, dos
Deuses todos e dos homens todos ele doma no peito o espírito e a
prudente vontade. (HESÍODO, 1995, p. 91).
É necessário afirmar que aqui o sentido do termo “Caos” não se igualha
perfeitamente com o de desordem que hoje temos. É em Ovídio, na obra
“Metamorfoses”, que, primeiramente, a conotação de desordem surgirá de modo
acentuado. Interessante notar que algum sentido de ordem ou organização já se faz
presente por meio do deus “Eros”. Este já tem sentido de ordem estética e de comando
sobre deuses e homens, mas ainda não a idéia de ordem que buscamos discutir, pois esta
só virá, cronologicamente, mais a frente.
Dentro da mesma discussão sobre a ordem do universo encontramos
Anaximandro de Mileto. Para ele o “apeíron” é o princípio. O fundamento da geração e
da ordem no universo em contraponto ao caos. Este principio é eterno. “O ilimitado é
eterno.” Para ele, “O ilimitado é imortal e indissolúvel.” (BORNHEIN, 1998, p. 25).
Além de eterno e imortal este ilimitado, que é o principio gerador da ordem, “abraça
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todos os cosmos.” (BORNHEIN, 1998, p. 25). Dentre todos os fragmentos que
chegaram até nossos dias e que dão testemunho do pensamento de Anaximandro, tal nos
parece o mais esclarecedor sobre o ponto que estudamos: “Anaximandro, companheiro
de Tales, dizia que o ilimitado é totalmente responsável pela gênese e pela dissolução
do universo (idem, p. 25). Afirmava ainda que a dissolução e, muito antes, a gênese,
aconteciam repetindo-se tudo isso desde um tempo ilimitado.” (ibidem, p. 25).
Para Heráclito de Éfeso, “O fogo é um elemento e tudo se faz pelas
transformações do fogo, quer por rarefação, quer por condensação. Contudo, nada
explica com suficiente clareza assim diz que tudo se faz pela oposição dos contrários, e
que o todo fluí como um rio. O Universo, segundo ele, é limitado, e há só um cosmos,
nascido do fogo e que voltara ao fogo após certos períodos, eternamente, É o destino
que assim quer. Entre os contrários, a luta que leva a formação do mundo, chama-se
guerra e desentendimento; e a combustão, chama-se concórdia e paz.” (ibidem, p. 44).
Dentre seus fragmentos destacamos, “A harmonia invisível e mais forte que a visível.”
(ibidem, p. 39) Para ele “Só uma coisa é sábia: conhecer o pensamento que governa
tudo através de tudo.” (ibidem, p. 38) Segundo ele o “Logos” que a tudo governa, por
ser a alma de tudo, impõe ao mundo uma ordem natural. Esta ordem também está no
homem que nada mais é que uma componente intrínseca deste sistema. O homem de
Heráclito é uma centelha do logos.
Em Pitágoras, o universo também se diferencia do mito expresso em
Hesíodo. O universo toma novo sentido. Se antes a idéia de ordem era expressa, de
modo primário, em Eros, doravante, Pitágoras nos traz um conceito bastante aprimorado
de ordem que ele revela por meio do termo cosmos:
Cosmos, para Pitágoras, que foi o primeiro a usar este termo para
indicar o universo, vem do verbo Kosmein, que significa organizar, e
se opõe a Khaos, o que ainda não foi ordenado. A harmonia é a
“unidade do múltiplo e o acordância do discordante”, o que é
manifesta em toda parte. Assim, o universo é harmônico, porque nele
vemos o discordante acordar-se em uma norma que predomina.
(SANTOS, 2000, p. 162).
Assim como a idéia de cosmos dota o universo de ordem em seu todo, ao
nível social ela traz o conceito harmonia. Esta harmonia com o cosmos se exprime ante
à coletividade. O mesmo senso de ordem presente no universo se exprime na
pólis
influindo no comportamento social e humano. Sabemos que esta teoria de Pitágoras se
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monta a partir de uma discussão de elementos da matemática. Neste pensador existe “A
idéia de que o Número é o primeiro princípio; o Número e suas relações ou ‘harmonias’
são os elementos de todas as coisas; o estudo do Número reflete-se também no
comportamento humano.” (BORNHEIN, 1998, p. 47). Da idéia de ordem universal é
que se infere a idéia de uma lei natural. A lei natural é uma das formas de expressão
desta lei universal presente em tudo que há. O jusnaturalismo nasce aqui como
expressão desta ordem em nível social. É uma forma, de enxergar o direito, bastante
diversa da que hoje temos. Hoje, em regra, vemos a lei como um fenômeno
determinado, convencionado e eleito pela vontade dos que compõem a sociedade. Para
os gregos da época em questão, ver a lei era, sobretudo, entender a vontade já presente
na natureza das coisas.
1.3 O conceito inaugural de jusnaturalismo. Sobre a isonomia e a concórdia
Acompanhando todas as mudanças ocorridas no período arcaico, o sentido e
o pensamento religioso também se inclinam ao novo paradigma social. Para Heráclito,
“o Logos, com o qual estão em constante relação [...] governa todas as coisas”
(BORNHEIN, 1998, p. 40). Este logos é, “dia e noite, inverno e verão, guerra e paz,
abundância e fome. Mas toma formas variadas, assim como o fogo, quando misturado
com essências, toma o nome segundo o perfume de cada uma delas.” (idem, p. 40). A
divindade se expressa no que existe. Ela não está apartada da existência. Há sem dúvida
em Heráclito uma clara ligação entre vontade divina e ordem da
pólis. As próprias
relações entre os membros da
pólis devem conter esta harmonia natural e essencial da
vida. Assim nos diz, ainda, Heráclito: “O bem pensar é a mais alta virtude; e a sabedoria
consiste em dizer a verdade e em agir conforme a natureza, ouvindo a sua voz.”
(ibidem, p. 38). Este ideal natural, para os arcaicos sinalizava em sentido da harmonia
da cidade. O encontro cívico dos membros da
pólis se adequava a este sentido do
cosmos bem mais que as disputas fratricidas entre vizinhos. A ligação entre cosmos e
pólis
pode ser percebida na tese dos pitagóricos. Sua idéia ligava, por meio de
raciocínios embasados na lógica da matemática, os fenômenos materiais e objetivos da
vida e os fatos sociais.
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E como os números são, por natureza, os primeiros entre estes
princípios, julgando também encontrar nos números muitas
semelhanças com seres e fenômenos, mais do que no fogo, na terra e
na água, afirmavam a identidade de determinada propriedade
numérica com a justiça, uma outra com a alma e o espírito, outra ainda
com a oportunidade, e assim todas as coisas estariam em relações
semelhantes (BORNHEIN, 1998, p. 50).
Essa sociedade concebida a partir de uma matemática interna e organizadora
também trazia uma justiça nestes moldes. Ela estava inerente a esta mesma
pólis de
forma inexorável, “É glória suprema da filosofia itálica ou pitagórica o haver
formulado, primeiro que qualquer outra, um conceito da justiça, [...] Para esta escola, a
justiça é, acima de tudo, igualdade” (DEL VECCHIO, 1960, p. 40). A igualdade ou
“
Íson” (VILLEY, 2009, p. 42), ou “Isoi” (VERNANT, 1998, p. 49), é um dos
elementos importantes daquela circunstância histórica. Mas vamos entender que
igualdade era esta.
Onde se encontra então a igualdade? Ela reside no fato de que a lei,
que agora foi fixada, é a mesma para todos os cidadãos e que todos
podem fazer parte dos tribunais como da assembléia. Antes eram o
‘orgulho’, a ‘violência de ânimo’ dos ricos que regulavam as
relações sociais. Portanto, Sólon era o primeiro que se recusava a
obedecer, a deixar-se ‘persuadir’. Agora é a
Dike que fixa a ordem de
divisão das
timaí, são leis escritas que substituem a prova de força em
que sempre os fortes triunfavam e que impõem sua norma de
equidade, sua exigência de equilíbrio. A
homónoia, a concórdia, é
uma ‘harmonia’ obtida por proporções tão exatas que Sólon lhes dá
uma forma quase numérica [...] O acordo entre as diversas partes da
cidade tornou-se possível (idem, p. 73)
A idéia de isonomia é, portanto central naquele contexto e precisa então ser
materializada dentro da
pólis. Para que assim ocorra, os gregos dão surgimento ao que
ficou conhecido como concórdia. A lei natural arcaica que tinha na isonomia sua veia
espiritual tinha na concórdia o desdobramento social e político desta isonomia.
Sólon é personagem emblemático deste processo e Aristóteles nos dá
informações muito esclarecedoras sobre a atuação política deste legislador ateniense: “o
povo pensava que ele iria proceder a uma nova distribuição de todos os bens, mas os
nobres esperavam regressar à antiga ordem ou então que poucas alterações fossem
introduzidas.” (ARISTÓTELES, 1986, p. 36). Entretanto, ao invés de repetir uma
fórmula política tão conhecida que é unir-se a um setor para dominar os demais, ele não
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se deixa levar pela estratégia mais fácil. A visão de estadista de Sólon alcança bem mais
longe do que esta prosaica tática pode oferecer, “Sólon, porém, enfrentou os dois lados
e, quando lhe era possível fazer-se tirano, aliando-se à parte que desejasse, ele preferiu
tornar-se odioso a ambos, contanto que assegurasse a salvação da pátria e para ela
criasse as melhores leis.” (ARISTÓTELES, 1986, p. 36). Sólon transcendeu ao senso
comum da época que enxergava o poder da
pólis em uma perspectiva tribal e familiar.
Superando a mera idéia de agregação ou ajuntamento de pessoas Sólon demonstra aos
gregos um esboço do que se pode chamar concórdia. A união de todas as classes em
favor do bem comum.
Para além da dominação de uma tribo ou classe sobre outra, Sólon propõe
que se atinja um estágio social mais avançado. Evidentemente que perdas existiram,
afinal os oligarcas detinham privilégios com o antigo sistema. Entretanto, o prejuízo da
oligarquia não lhes foi imputado a título de retaliação ou de punição. Eles perdem poder
em nome de um sistema social mais racional. Portanto, o projeto de lei de Sólon quer
abarcar ao todo da cidade, mas não tem a pretensão de ser imparcial. A idéia de Sólon é
sim impregnada de valor. Fundamentada em uma opção em uma escolha, mas esta
escolha se baseia em uma idéia de sociedade que suplanta o sistema anterior, “nada do
que pertence ao domínio público pode mais ser regulamentado por um indivíduo único,
mesmo que ele seja o rei. Todas as coisas ‘comuns’ devem ser o objeto, entre os que
compõem a coletividade política” (VERNANT, 2002, p. 250). Sólon está convidando os
gregos a atingirem um estágio diferenciado de civilização:
Um outro traço se acrescenta para caracterizar o universo espiritual da
polis. Os que compõem a cidade, por mais diferentes que sejam por
sua origem, sua classe, sua função, aparecem de uma certa maneira
“semelhantes” uns aos outros. Esta semelhança cria uma unidade da
polis, porque, para os gregos, só os semelhantes podem encontrar-se
mutuamente unidos pela philia, associados numa mesma comunidade.
O vínculo do homem com o homem vai tomar assim, no esquema da
cidade, a forma de uma relação recíproca, reversível, substituindo as
relações hierárquicas de submissão e de domínio. Todos os que
participam do Estado vão definir-se como Hómoioi, semelhantes,
depois, de maneira mais abstrata, como os Isoi, iguais. Apesar de tudo
o que os opõe no concreto da vida social, os cidadãos se concebem, no
palco político, como unidades permutáveis no interior de um sistema
cuja lei é o equilíbrio, cuja norma é a igualdade. Essa imagem do
mundo humano encontrará no século VI sua expressão rigorosa num
conceito, o de isonomia: igual participação de todos os cidadãos no
exercício do poder. (VERNANT, 1998, p. 49)
19
Na opção de Sólon a questão do poder político não se resolve elegendo uma
classe social específica que comande as demais. A novidade trazida por Sólon é sim por
um poder que caminhe em sentido racional. É assim que o próprio Sólon descreve, em
síntese, seu governo e sua legislação: “Mas eu, dos objetivos com que reuni o povo,
algum há que deixei por atingir? Pode testemunhá-lo na justiça do tempo a mãe suprema
dos deuses olímpicos [...] Isto atingi com o poder, a um tempo força e justiça
harmonizando [...] Leis, tanto para o vilão como para o nobre, que para cada um recta
justiça se ajustavam, escrevi. [...] bem no meio deles qual marco me postei.”
(ARISTÓTELES, 1986, p. 38).
A construção desta nova sociabilidade implica que, “às relações de força
tentar-se-á substituir relações de tipo ‘racional’, estabelecendo em todos os domínios
uma regulamentação baseada na medida e visando a proporcionar, a ‘igualar’ os
diversos tipos de intercâmbio que formam o tecido da vida social.” (VERNANT, 1998,
p. 73). Este intercâmbio não determina uma igualdade em sentido econômico ou de
distribuição de riquezas materiais, “Trata-se, pois, de promulgar para a cidade regras
que codificam as relações entre indivíduos, segundo os mesmos princípios positivos de
vantagem recíproca que presidem ao estabelecimento de um contrato.” (idem, p. 74).
Um exemplo emblemático deste momento é a questão relativa a unificação da moeda da
pólis
ateniense:
é no quadro desse esforço geral de codificação e de medida que se
deve situar a instituição da moeda em seu sentido próprio, isto é, da
moeda de Estado, emitida e garantida pela Cidade. [...] a instituição da
moeda integra-se no empreendimento de conjunto dos ‘legisladores’.
Marca a confiscação em proveito da comunidade do privilégio
aristocrático da emissão de lingotes puncionados, a retenção pelo
Estado das fontes de metal precioso, a substituição dos brasões
nobiliários pela cunhagem da Cidade; é ao mesmo tempo o meio de
codificar, regrar, ordenar os intercâmbios de bens [...] no plano
intelectual, a moeda titulada substitui a imagem antiga, toda carregada
de força afetiva e de implicações religiosas (idem, p. 74)
As mudanças efetuadas neste período podem ser comparadas, guardadas as
devidas proporções, ao que hoje chamamos estado de direito ou de legalidade, onde o
ordenamento legal dotado de impessoalidade busca equacionar os diversos interesses da
sociedade. É isso que propunha a idéia de concórdia, “É nessa filosofia grega muito
antiga que deveríamos ir buscar os germes da idéia de direito natural”. (VILLEY, 2009,
20
p. 18). Todos os setores da
pólis se centralizaram por aquele novo sistema. Esta
mudança implicou que todos tivessem que obedecer ao mesmo sistema jurídico.
Estas criam um espaço para a igualdade, a
isotes, que já aparece como
um dos fundamentos da nova concepção da ordem. Sem
isotes não há
cidade porque não há
philia. ‘O igual, escreve Sólon, não pode
engendrar guerra’. Mas trata-se de uma igualdade hierárquica – ou,
como dirão os gregos, geométrica e não aritmética; a noção essencial é
de fato a de ‘proporção’. A cidade forma um conjunto organizado, um
cosmos
, que se torna harmonioso se cada um de seus componentes
está em seu lugar e possui a porção de poder que lhe cabe em função
de sua própria virtude. (VERNANT, 1998, p. 72)
O acordo é natural para a cidade enquanto o conflito improdutivo. O
desacordo não ajuda no desenvolvimento do todo da cidade. Natural é a cidade
harmônica para que nesta harmonia possa se desenvolver e trazer o bem estar social a
todos. Uma
pólis forte traz segurança e bem estar. Aqui o foco é a pólis e o homem é
apenas parte deste fenômeno natural que é a cidade harmônica. A cooperação entre
todos é como a cooperação dos astros que mantêm o universo em harmonia. A
pólis está
no centro, como a terra está no centro do universo.
Este novo sentido de comunidade retirava do imaginário social a
dependência do herói homérico que era o centro da virtude e a plataforma sob a qual a
cultura grega era fundada. A virtude agora estava sediada na
pólis. A medida que a
cidade cresce em significado, os oligarcas são alijados desta centralidade. A primeira
idéia de lei natural, portanto compõe este cenário de grande descoberta do universo
político e social. Descoberta de uma nova sociabilidade que superava a figura do
oligarca patriarca em seu feudo.
A primeira lei natural é também um exercício de debruçar-se sobre a
coletividade e percebê-la meritória. Uma sociabilidade pujante pela racionalidade. Não
é a toa que se consideram os gregos como os inventores da arte política. Já aqui a lei
natural guardava sua característica de lei transcendente e protetora de bens
fundamentais da vida, mas o bem guardado nesta sua primeira versão é o bem coletivo.
O bem existente no espírito isonômico e na tese de concórdia. Os olhares dos gregos
voltam-se para o conjunto da
pólis e não ao bem ou direito individual, já é possível já
aqui sentir a essência fundamental do jusnaturalismo.
21
1.4 A questão do
nomos e do legalismo
Esta concórdia da
pólis é materializada no nomos. A lei instituída é o
instrumento deste acordo. Por isso, Heráclito argumenta que, “O povo deve lutar por sua
lei como pelas muralhas.” (BORNHEIN, 1998, p. 26). As leis humanas se nutrem na
lógica do cosmos instrumentalizando a isonomia ideal para a
pólis, “o reconhecimento
grego da supremacia da lei, enquanto oposta à vontade de rei ou tirano, era algo de que
os gregos se orgulhavam” (GUTHRIE, 1995, p.70). Por isso, Heráclito também declara
que, “Os que falam com inteligência devem apoiar-se sobre o comum a todos, como
uma cidade sobre as suas leis, e mesmo muito mais. Pois todas as leis humanas nutremse
de uma única lei divina. Esta domina, tanto quanto quer; basta a todos (e a tudo) e
ainda os ultrapassa.” (BORNHEIN, 1998, p. 26).
Para entender o
nomos convém saber que, “Esta palavra deve ser traduzida,
não tanto por lei escrita, mas por costume próprio a uma
pólis; ordem social; direito. O
grego muitas vezes se opõe aos bárbaros por seu culto consciente do
nomos e da justiça”
(VILLEY, 2009, p.17). Trata-se do regramento de cada comunidade grega, tal contava
com respaldo social e grande respeito, “é notável, entre o povo grego, desde uma época
muito antiga, o culto do
nomos” (idem, p.17). Seria uma fase de amadurecimento da lei
na Grécia. Esta versão grega da lei institucionalizada superava a fase da lei como
expressão da vontade isolada de um monarca ou oligarca.
Esse
Nomos guarda, por sua relação com a Dike, uma espécie de
ressonância religiosa; mas exprime-se também e sobretudo num
esforço positivo de legislação, numa tentativa racional para pôr fim a
um conflito, equilibrar forças sociais antagônicas, ajustar atitudes
humanas opostas. [...] A justiça aparece como uma ordem
inteiramente natural que por si mesma se regulamenta. (VERNANT,
1998, p. 68)
O
nomos nada mais é que a expressão desta lei natural que por sua vez é a
interpretação de uma harmonia que deve presidir o mundo. A lei natural fundamenta
diretamente a lei positiva. Entretanto não devemos pensar que os arcaicos tivessem uma
visão mística da lei positiva. Como diz Aristóteles, “Sólon estabeleceu uma constituição
e promulgou outras leis [...] Ele vinculou a vigência das leis por cem anos”
(ARISTÓTELES, 1986, p. 30). A própria lei já estimava um tempo máximo de
vigência. Informação que desmonta supostas pretensões de eternidade ou imutabilidade
da lei. Para ilustrar a questão acima vejamos um trecho de Heródoto que retrata certo
22
diálogo entre o rei persa Xerxes e Demarato, rei deposto de Esparta. Os interlocutores
dialogam sobre a iminente invasão dos persas à Grécia:
‘Eles são livres sim’, respondeu Demarato, ‘mas não inteiramente
livres; pois têm um senhor, e o senhor é a lei, a que temem ainda
muito mais que teus súditos a ti. O que quer que mandar este mestre,
farão, e sua ordem é sempre a mesma. Ele não lhes permite fugir em
batalha, venha o que vier, urgindo-os a se manterem firmes,
conquistar ou morrer’ (
GUTHRIE, 1995, p.70)
Nascido em 460 a. C., data que se põe em torno do ano em que Péricles
ascendia ao poder, Demócrito de Abdera é um exemplo exponencial de como o culto
grego ao
nomos, nascido no período arcaico, teve ampla recepção pelas gerações
posteriores, “Demócrito era outro defensor do
nomos, de que ofereceu uma concepção
ainda mais exaltada. A lei existe para o beneficio da vida humana, e obedecendo-lhe nos
conscientizamos de sua excelência (
arete).” (idem, p. 69). É o que também podemos
inferir a partir de fragmento do próprio Demócrito, “Sujeitar-se à lei, à autoridade e ao
mais sábio pertence ao sentido da ordem.” (BORNHEIN, 1998, p. 109). A lei se fazia
realmente prestigiada em Demócrito; percebemos isto quando este profere: “É
grandioso pensar no dever quando se está em desgraça.” (idem, p. 109).
O fenômeno chamado
nomos teve este primeiro momento brilhante de
existência, “o reconhecimento grego da supremacia da lei, enquanto oposta à vontade de
rei ou tirano, era algo de que os gregos se orgulhavam” (GUTHRIE, 1995, p.70). Sua
essência era de representante de algo maior que ele mesmo. Ele era a face visível da
concórdia. Esta é segundo Guthrie o primeiro dos significados deste conceito.
(a) uso ou costume baseado em crenças tradicionais ou convencionais
quanto ao que é certo ou verdadeiro [...] O primeiro foi anterior, mas
que nunca se perdeu de vista, de sorte que para a lei grega, por mais
que fosse formulada por escrito e reforçada pela autoridade,
permanecia dependente de costume e hábito. (idem, p. 58,59)
Em período posterior, o mesmo fenômeno passou a ter significado diferente
assim descrito também por Gutrhie, “(b) leis formalmente esboçadas e passadas, que
codificam o ‘uso correto’, elevando-o a norma obrigatória do Estado.” (idem, p. 58,59).
À idéia de
nomos se incorporou uma visão completamente legalista:
23
Pelos meados do séc. V uma tendência secular de pensamento ganha
terreno às custas da teística, que porém, não desapareceu
completamente. Lado a lado com ela surgiu uma ‘natureza’
impessoal, cujos decretos eram tão absolutos e cuja negligência tão
inevitavelmente punida como o tinham sido a dos deuses. Mas eles
não seguem os preceitos da moralidade tradicional, pois, sob a
influência de teorias científicas mecanicísticas, o mundo natural não
mais se sujeita a governo moral. (GUTHRIE, 1995, p. 122)
Este significado que tomou o
nomos em um segundo momento em nada
representa a primeira idéia surgida no período arcaico. A imagem do
nomos agora
também é estabelecida pelo discurso político com interesses diferentes dos ideais de
concórdia. Sólon propôs a lei magnânima. Sua intenção era que a lei proporcionasse
participação a todos os setores da
pólis. O legalismo do século V intentava exatamente o
contrário. Tentava instrumentalizar o domínio do setor que estivesse no poder, e longe
de postular uma harmonia virtuosa, postulava uma dominação viciosa.
1.5 A lei natural em Aristóteles. Sobre a lei política ou constitucional
1.5.1 Da concórdia a constituição
A primeira versão jusnaturalista se apresenta como um tipo de limitação ao
poder isolado de um membro ou uma classe da
pólis ante os demais. Na prática a
concórdia, termo que nomina a lei natural no período arcaico, reorienta às
pólis gregas
em sua trajetória social. O objetivo da concórdia é sobrepujar as disputas entre tribos ou
classes em nome de uma unidade de toda a cidade, como já estudamos. A concórdia é
em síntese a idéia de que o poder da
pólis pertence ao conjunto dos cidadãos e não pode
ser usurpado por um dos cidadãos ou grupo em particular. Ela toma seu lastro nas idéias
de isonomia e igualdade geométrica. Desde o início o jusnaturalismo significou um tipo
de anteparo, garante ou limite contra o poder absolutista ou mesmo oligárquico.
Na versão, posterior ao momento grego, pela qual se consagrou
historicamente, o jusnaturalismo continua tendo a função de limitar o poder absoluto,
porém não mais como prevenção apenas de um tirano contra os membros do Estado,
mas também como garantia do cidadão contra os desmandos e a tirania deste próprio
Estado. É a idéia de limitação do Estado diante do cidadão ou indivíduo que, por
natureza, detém direitos fundamentais. É com este espírito que o jusnaturalismo se
24
incorporará à história da humanidade, como um bastião em defesa dos direitos
fundamentais inerentes ao indivíduo. Todavia para melhor entender o nascimento deste
segundo modelo, devemos entender que ele de alguma forma já era gestado no ventre
do primeiro modelo jusnaturalista elaborado pelos gregos, pois já lá encontramos o
traço fundamental de prevenção à tirania e ao absolutismo. O que os gregos não
conseguem é vislumbrar neste cenário a figura do indivíduo.
É Aristóteles que genialmente aperfeiçoa a idéia recebida do período
arcaico. A idéia de concórdia ganha em Aristóteles a dimensão de lei constitucional. A
concórdia que, com Sólon foi bandeira para o pensamento isonômico era agora, ainda
dentro deste mesmo espírito isonômico, reformulada e aprimorada pela tese Aristotélica
que busca e se orienta pelo bem comum ou bem da
pólis. Este bem comum não pode ser
usurpado por um tirano. Não pode ser concebido como algo particular já que pertence
ao conjunto dos cidadãos. A constituição, que representa as leis primárias e
fundamentais da
pólis instrumentaliza esta limitação que deve ser respeitada por todos
os cidadãos. A constituição é a lei natural e goza de uma superioridade especial para que
todos os que a ela se ligam possam desfrutar de um bem comum. Aristóteles, portanto,
não se desvincula da idéia de primazia da
pólis, entretanto aquilo que ele diz sobre a lei
natural, ainda que nestes moldes, é de importância capital para o jusnaturalismo.
1.5.2 A lei natural é a norma constitucional
Anteriormente discutimos que a figura do
nomos veio, no decurso histórico,
a tomar um viés legalista que lhe tornava pouco sustentável diante das necessidades
sociais da
pólis. Este ponto precisa ser retomado já que é daqui que Aristóteles parte
para desenvolver sua versão de lei natural. Discernindo sobre este problema normativo,
ele desenvolve a teoria de que a lei natural se expressa por meio de leis essenciais, ou
seja, o jusnaturalismo trata não de todas as leis, mas apenas das que são principais. Eis
que, já que existe uma lei principal, a primeira questão que nos aparece é a de existirem,
então, leis de conteúdos ou graus diversos. O Estagirita nos dirá, sobre as leis, que elas
são diversas e que também diferem em sua função:
25
Distingamos agora todos os actos de injustiça e de justiça começando
por observar que o que é justo e injusto foi definido de duas maneiras
em relação a dois tipos de leis e a duas classes de pessoas.
Chamo lei
tanto à que é particular como à que é comum. É lei particular a
que foi definida por cada povo em relação a si mesmo, quer seja
escrita ou não escrita; e comum, a que é segundo a natureza
[...]
há na natureza um princípio comum do que é justo e injusto, que todos
de algum modo adivinham mesmo que não haja entre si comunicação
ou acordo (ARISTÓTELES, 2005, p. 144, grifo nosso).
Da mesma forma, na “Ética a Nicômaco”, Aristóteles opina que, “existem
uma justiça natural e uma justiça que não é natural.” (2001, p. 103). É preciso distinguir
dentro do fenômeno normativo a variedade de suas manifestações. Aquilo que se chama
lei ou
nomos, diferente do que se pensou, não compõe apenas um modelo único. E para
ser mais específico podemos dividir a lei entre positiva e natural. É preciso enfatizar
sobre tal divisão, a não contradição existente entre as diferentes normas, pois o
Estagirita refuta o conflito alegado por alguns entre
nomos e natureza, “Tal dualismo
nos parece bastante distante de Aristóteles.” (VILLEY, 2009, p. 47). É ainda Villey que
afirma que em Aristóteles, “a solução de direito deve ser alcançada conjuntamente por
essas duas fontes, que não são opostas, mas complementares” (idem, p. 47). Este é um
grande avanço diante dos desentendimentos, em torno deste ponto, ocorridos no final do
século V. Caso o pensamento de que existe contrariedade entre as leis naturais e
positivas tivesse prosperado tal, teria inviabilizado uma tese jusnaturalista, por ser
inconcebível uma sociedade sem as leis positivas. E nesse caso as leis naturais é que
seriam refutadas.
Desarmando a contradição entre as normas, Aristóteles faz uma proposição
fundamental para sua tese jusnaturalista, a de que, dentre estas leis, a que goza de
hierarquia superior é a lei natural, “Aliás, faz-se necessária uma distinção entre as leis.
Aquelas que estão impressas nos costumes dos povos têm uma autoridade bem maior e
uma importância bem diferente das que estão escritas” (2006, p. 154). Obviamente a lei
natural consta no topo da hierarquia entre as leis para o Estagirita. Esta justiça natural é
diferente e tem preferência ante a justiça convencional ou positiva, “Com efeito, as leis
devem ajustar-se à Constituição, e não a constituição às leis.” (idem, p. 149).
Esta lei natural que é concebida como superior a lei convencional,
Aristóteles descreve como a justiça constitucional ou política: “A justiça política é em
parte natural e em parte legal” (ibidem, p. 103). A constituição de uma
pólis deve tratar
26
da distribuição do poder político desta
pólis. Esta é a lei fundamental e primeira do
Estado, diferente da lei secundária ou positiva que segundo a classificação do Estagirita
trata das questões secundárias. É nestes termos que vemos surgir à primeira expressão
do constitucionalismo e sua relação unigênita com a lei natural.
A constituição é a ordem ou distribuição dos poderes que existem num
Estado, isto é, a maneira como eles são divididos, a sede da soberania
e o fim a que se propõe a sociedade civil. As leis não são a mesma
coisa que os artigos fundamentais da constituição; elas servem apenas
de regra para os magistrados no exercício do governo, e também para
conter os refratários. (ARISTÓTELES, 2006, p. 149)
Para Aristóteles, “A primeira função da justiça é zelar pelas distribuições
dos bens, das honrarias, dos cargos públicos entre os membros da polis.” (VILLEY,
2009, p. 42). Ou seja, a lei política se relaciona com a fundação ou constituição da
pólis,
é a gênese do direito constitucional. Aliás, Villey, ao discorrer sobre esta distinção entre
formas do direito, diz que alguns, “autores vêem nela a fonte da futura distinção entre
direito público e direito privado.” (idem, p. 43). Este é um ponto central sobre a lei
natural em Aristóteles. É importante que o estudo da idéia de natureza em Aristóteles
tenha uma coerente interpretação, considerando-se seu discurso sobre a natureza da
cidade e da lei, é mais prudente do que dar margem a teses generalistas.
Uma das espécies de justiça em sentido estrito [...] é a que se
manifesta na distribuição de funções elevadas de governo, ou de
dinheiro, ou das outras coisas que devem ser divididas entre os
cidadãos que compartilham dos benefícios outorgados pela
constituição da cidade, pois em tais coisas uma pessoa pode ter uma
participação desigual ou igual à de outra pessoa (ARISTÓTELES,
2001, p. 95).
Aristóteles delimita a lei natural em torno dos costumes da
pólis, “faz-se
necessária uma distinção entre as leis. Aquelas que estão impressas nos costumes dos
povos têm uma autoridade bem maior e uma importância bem diferente das que estão
escritas” (ARISTÓTELES, 2006, p. 154). Isto é, Aristóteles acreditava haver, “na
natureza um princípio comum do que é justo e injusto, que todos de algum modo
adivinham mesmo que não haja entre si comunicação ou acordo” (ARISTÓTELES,
2005, p. 144). Este princípio comum que era, portanto gravada no costume das
pólis era
a lei natural ou política, pois, “são naturais as coisas que em todos os lugares têm a
27
mesma força e não dependem de as aceitarmos ou não” (ARISTÓTELES, 2001, p. 103).
Para o Estagirita o cerne do que esta fixada no costume se norteia
principalmente pela noção de isonomia e concórdia. Isonomia e concórdia eram no
período arcaico duas faces da mesma moeda. A isonomia era o sentimento de que havia
uma igualdade relativa. Esta igualdade geométrica era viabilizada pela concórdia ou
entendimento coletivo entre os cidadãos da
pólis. Este modo de pensar é basicamente o
que orienta Aristóteles, pois, dos primórdios da
pólis até sua geração, estas bandeiras já
se haviam incorporado ao costume grego. Esta era, por conseguinte, a tese que ecoava
na mente do Estagirita. Estas pessoas que guardam entre si um laço de união formam a
pólis
e têm entre si as regras primárias desta cidade: as leis políticas: “o justo em sentido
político [...] se apresenta entre pessoas que vivem juntas com o objetivo de assegurar a
auto-suficiência do grupo – pessoas livres e proporcionalmente ou aritmeticamente
iguais.” (ARISTÓTELES, 2006, p. 102). É a hipótese que se reforça pelo trecho abaixo:
não é natural que numa Cidade composta de pessoas semelhantes
apenas um seja senhor de todos os cidadãos. [...] Entre semelhantes
por natureza, o direito, dizem eles, e a posição social devem ser os
mesmos. [...] assim também, quanto às magistraturas, não seria justo
que os iguais participassem dela de forma desigual. [...] Não deve
haver para todos senão uma mesma medida de mando e sujeição, e
cada qual deve ter a sua vez. (idem, p. 152, 153).
Aristóteles demonstra toda a profundidade de sua filiação e crença nesta
forma de organização isonômica quando explica que ela, “decorre da natureza essencial
das coisas e, por conseguinte, é uma lei eterna à qual é preferível obedecer do que ter
que sujeitar-se a um cidadão qualquer.” (ibidem, P. 153). A lei natural em Aristóteles,
como vimos, está inexoravelmente ligada ao costume desta
pólis, no entanto
discutiremos em momento oportuno a respeito, porque Aristóteles não tece maiores
comentários sobre o processo de formação deste costume e não discute de que modo
este costume se legitima diante da razão. Ele não esclarece a contento, se a lei
costumeira precisa ser promulgada para incorporar poder coativo; são pontos sobre os
quais ele cala. Fato que se explica pelo entendimento de sua idéia sobre a natureza da
pólis
, “O Estado, ou a sociedade política, é até mesmo o primeiro objeto a que se propõe
a natureza. O todo existe necessariamente antes da parte.” (ibidem, 5). O costume é o
costume da
pólis e esta pólis é o objeto principal da natureza em Aristóteles. É esta
visão de natureza que nos interessa para entender o jusnaturalismo no Estagirita.
28
Embora tenha discutido sobre a racionalidade da natureza humana, não pôs esta
natureza humana como ponto central em seu naturalismo geral. Para ele o centro é a
pólis
com sua harmonia natural, idéia que vem dos gregos do período arcaico para quem
a harmonia na
pólis era a surgida do cosmos. Adiante discutiremos detidamente a
questão da centralidade da
pólis na tese de Aristóteles.
1.5.3 Proteção ao bem coletivo. A defesa da isonomia
Seguindo a linha de raciocínio do tópico anterior podemos assinalar que a
lei natural é, simultaneamente, o fenômeno revelador desta isonomia como também o
instrumento assegurador desta ordem. Enquanto ditame da natureza a lei natural é o
espírito isonômico e enquanto instrumento assegurador desta ordem a lei natural é a
constituição, “É por isso que não permitimos que um homem governe, e sim a lei, por
que um homem pode governar em seu próprio interesse e tornar-se um tirano.”
(ARISTÓTELES, 2001, p. 102). A lei é um depositário mais seguro do que um homem
individual ou particularmente. A lei guarda este patrimônio coletivo que é a soberania
cimentada na isonomia.
Querer que o espírito comande equivale a querer que o comando
pertença a Deus e às leis. Entregá-lo ao homem é associá-lo ao animal
irracional. Com efeito, a paixão transforma todos os homens em
irracionais. A animosidade, principalmente, torna cegos os altos
funcionários, até mesmo os mais íntegros. A lei, pelo contrário, é o
espírito desembaraçado de qualquer paixão. (ARISTÓTELES, 2006,
p. 153)
Aristóteles se refere a um ponto importante para qualquer sociedade: o de
que um Estado e sua constituição não podem dançar ao bel prazer dos eventos ou dos
desejos momentâneos dos governantes. O governo é circunstância, mas o Estado e a
constituição devem espelhar uma segurança e uma solidez maior do que a simples
vontade unilateral do governante. Mas, é importante esclarecer que o Estagirita não
concebe a lei como imutável, pois, “embora exista algo verdadeiro até por natureza,
todos os dispositivos legais são mutáveis.” (ARISTÓTELES, 2001, p. 103). Devemos
lembrar que Aristóteles conhecia a obra de Sólon. Este grande legislador ateniense
impunha prazo máximo de vigência para sua legislação, ou seja, desde o inicio já se
sabia sobre seu término.
29
O direito natural neste momento, representado pela constituição que não é
imutável, deve retratar a idéia de que a norma precisa estar lastreada em um espírito
abrangente e sólido, em uma análise bastante qualificada e equilibrada. A lei não pode
incorporar as vontades menores dos dirigentes em detrimento do plano maior do Estado:
Se for preciso considerar justo todo decreto que emanar de tal
soberano, o que se qualificará de extrema iniqüidade? Da mesma
forma, se, na totalidade dos habitantes, a maioria decide usurpar os
pertences da parte menos numerosa, isto não equivale desagregar a
sociedade? Ora, sendo a justiça o principal bem do Estado, não é
possível que ela o dissolva. Ela não tolera tal roubo. Não é possível
que decretos tão injustos tenham valor de lei. (ARISTÓTELES, 2006,
p. 150)
Sem este instrumento legal o Estagirita acredita ser inviável o bom
desenvolvimento da
pólis pelo fato de que, “Onde as leis não tem força não pode haver
República, já que este regime não é senão uma maneira de ser do Estado em que as leis
regulam todas as coisas em geral e os magistrados decidem sobre os casos particulares.”
(idem, p. 126). As leis devem governar porque, “a função do governante é ser o
guardião da justiça e, se ele é guardião da justiça, também é guardião da igualdade.”
(ARISTÓTELES, 2001, p. 102). Sabemos que para Aristóteles, “O justo é antes o
equilíbrio realizado, numa polis, entre os diversos cidadãos que nela se reúnem, se
associam.” (VILLEY, 2009, p. 44). Se a justiça é sinônimo de igualdade a prevenção
contra o possível usurpador desta igualdade deve ser severo:
Trataremos agora da questão do monarca absoluto, que tudo decide
conforme a sua vontade; pois o que chamamos monarquia limitada
não representa, como acabamos de lembrar, uma forma particular de
governo, podendo o comando perpétuo dos exércitos ocorrer em
qualquer República, mesmo na democracia, assim como na
aristocracia. Com efeito, a maioria confia a um só a autoridade do
governo, como em Epidauro e em Oponte, onde ela é ainda mais
irrestrita.
(ARISTÓTELES, 2006, p. 152).
A prevenção à tirania e a usurpação do poder para Aristóteles não passava
apenas pela escolha de uma ou outra forma de governo, já que, somente, o regime de
governo não garantiria a repartição equilibrada do poder político. É isto que o Estagirita
assinala acima. Eis mais um motivo para seu esforço ao pensar a constituição da
pólis.
Aristóteles revela uma compreensão pouco ingênua da política ao dizer que
independente do sistema de poder, se os cidadãos entregarem o poder a um só dirigente,
30
a tirania estará instalada da mesma forma. Este tipo de preocupação de Aristóteles
servirá de aviso a todas as gerações que virão e pensarão o Estado a partir de suas teses
de lei natural. O poder precisa de limitações que assegurem o equilíbrio. É neste sentido
que o Estagirita trata da questão da separação dos poderes.
Em todo governo, existem três poderes essenciais, cada um dos quais
o legislador prudente deve acomodar da maneira mais conveniente.
Quando estas três partes estão bem acomodadas, necessariamente o
governo vai bem, e é das diferenças entre estas partes que provêm as
suas. O primeiro destes três poderes é o que delibera sobre os
negócios do Estado. O segundo compreende todas as magistraturas ou
poderes constituídos [...] O terceiro abrange os cargos de jurisdição.
(ARISTÓTELES, 2006, p. 127)
A temática da restrição ao poder tratada por Aristóteles, terá uma versão
distinta no modelo jusnaturalismo tomista. Distinta, mas ainda imbuída da tarefa de
traçar reduções ao poder político e de Estado. Nesta primeira fase o jusnaturalismo
enfatiza o bem coletivo na figura da isonomia. E as limitações, logo visam assegurar
este bem. Em Aquino o bem da vida a ser protegido se volta para a dimensão do
indivíduo. Doravante as limitações da lei natural não cuidarão unicamente da usurpação
do poder de Estado, mas também da prevenção de que este próprio Estado não venha a
violentar os direitos inatos ao homem.
31
2 ELEMENTOS SOBRE A TRANSIÇÃO DO JUSNATURALISMO GREGO AO
TOMISTA
2.1 Sobre a questão da natureza humana
Platão e Aristóteles são precursores da discussão sobre a racionalidade
humana. A tese de racionalidade prática de Aristóteles é estrada para toda a discussão
posterior sobre o tema. É nos postulados elencados pelo Estagirita que Tomás de
Aquino busca elementos para sua tese de lei natural. É notório, por exemplo, em uma
sentença de capital expressão assinalada na “Suma Teológica” que não pode faltar a esta
discussão: “A regra e a medida dos atos humanos é, com efeito, a razão, a qual é o
primeiro princípio dos atos humanos, como se evidencia do que já foi dito; cabe com
efeito, à razão ordenar ao fim, que é o primeiro princípio do agir, segundo o Filósofo.”
(S. T., I-II, Q. 90, a. 1). Destarte cuide do conceito aristotélico de razão prática, Santo
Tomás o faz em uma perspectiva bastante distinta do Estagirita. Esta diferença nos
alicerces teóricos marca centralmente a distinção entre as teses dos dois pensadores e
isto é significativo para o pensamento jusnaturalista. Para melhor entender Aquino
abordaremos alguns elementos de discussões antecedentes a sua tese. Elementos que
foram absorvidos por Aquino e reinterpretados a fim de que, em nova perspectiva
viessem a compor sua tese de lei natural. Especificamente dois pontos são significativos
para o encontro de Santo Tomás com o jusnaturalismo grego: as discussões sobre a
natureza humana e a razão.
No século V, os debates na Grécia giravam em torno de, “se divisões dentro
do gênero humano são naturais ou somente uma questão de
nomos; sobre igualdade, se
o domínio de um homem sobre o outro (escravidão) ou de uma nação sobre outra
(império) é natural e inevitável, ou somente por
nomos e assim por diante.” (GUTHRIE,
1995, p. 59). É este século que gesta a idéia de natureza humana, “O conceito de
natureza humana, que tão freqüentemente percebemos nos sofistas e nos seus
contemporâneos, nasceu no domínio da medicina científica. Transpôs-se da totalidade
32
do universo para a individualidade humana o conceito de physis, que recebeu, assim,
um matiz peculiar.” (JAEGER, 1995, p. 357).
É dos sofistas que advém a frase exponencial sobre o tema, “O homem é a
medida de todas as coisas” (PLATÃO, 2011, p.11), frase atribuída a Protágoras o maior
dos professores entre os sofistas. Como conseqüência desta discussão, “se passa do
conceito médico da physis humana, como organismo físico dotado de determinadas
qualidades, ao conceito mais amplo da natureza humana, tal qual o encontramos nas
teorias pedagógicas dos sofistas.” (JAEGER, 1995, p. 357). Contudo tal análise não se
aprofunda satisfatoriamente. As bases em que a questão do indivíduo está sendo
discutida deixam margem a equívocos grotescos. Faz-se necessário uma melhor
elaboração quanto ao tema já que, “o ideal de formação humana propugnado pelos
sofistas tem em si um grande futuro, mas não é uma criação acabada. [...] era
precisamente pelo que as suas aspirações tinham de superlativo que elas necessitavam
de um fundamento mais profundo de ordem filosófica” (idem, p. 353).
Um tópico que é posto nesta discussão por Platão e Aristóteles é de suma
importância: a questão da racionalidade humana. Serão apresentados alguns itens desta
polêmica sobre a razão em Platão e Aristóteles. Para o jusnaturalismo tomista este ponto
é da maior importância uma vez que a razão é atributo humano que, segundo Santo
Tomás, liga o indivíduo a lei eterna. A lei natural tomista, diversamente da grega, tem o
homem enquanto objeto central e primaz, mas esta centralidade está baseada na função
racional do homem, por isso, mesmo não tendo orientado seu pensamento pela idéia de
individualidade Platão e Aristóteles fornecem o instrumento para que Aquino trabalhe a
mesma.
Dadas as discussões efetuadas no século V a idéia de natureza migra do todo
da
pólis para um universo mais específico: o universo humano. A noção de natureza
humana, “Significa agora a totalidade do corpo, da alma e, em particular, os fenômenos
internos do homem.”. (ibidem, p. 357). Uma personalidade que retratou o período da
crise cética na Grécia é bastante considerável no desenrolar desta discussão:
É em sentido análogo que naquele tempo o usa o historiador
Tucídides. Modifica-o, porém, de acordo com seu objeto, dando-lhe o
significado de natureza moral e social do Homem. A idéia de natureza
humana, como é agora concebida pela primeira vez, não é, de per si
natural. É uma descoberta essencial do espírito grego. (ibidem, p. 357)
33
Para exemplificar o que Werner Jaeger diz, explanaremos alguns trechos do
texto de Tucídides. Nestes se apresentará o sentido empregado para o termo natureza
humana. É na obra, “A História da Guerra do Peloponeso”, que Tucídides traz
elementos que esclarecem a questão. Vemos, por meio desta narrativa histórica, que,
“Os gregos esboçam a idéia de ser, uma norma firmemente estabelecida que os mais
fracos fossem governados pelos mais fortes.” (TUCÍDIDES, 2001, p. 44). Vemos outro
exemplo claro desta inversão de valores quando os gregos, “Proferem também que os
princípios da justiça, [...] jamais impediram alguém de tornar-se maior pela força
quando se apresenta a ocasião” (idem, 2001, p. 44). O valor da justiça é totalmente
dissociado de qualquer critério de virtude. A virtude heróica, tão ressaltada em Homero,
em nada mais sensibiliza neste momento. Facilmente entendemos o rumo que se dava
ao conceito de natureza humana.
Nada há de extraordinário, portanto, ou de incompatível com a
natureza humana no que fizemos, apenas por havermos aceito um
império quando ele nos foi oferecido [...] E merecem elogios aqueles
que, cedendo ao impulso da natureza humana para governar os outros,
foram mais justos do que poderiam ter sido considerando-se a sua
força. Seja como for, se outros conquistassem o nosso poder, logo se
veria, por comparação, o quanto somos moderados. Esta moderação,
todavia, por uma aberração tem sido para nós mais um motivo de
censura que de elogios. (ibidem, 2001, p. 44)
Em outro trecho o mesmo autor contínua a mesma linha de pensamento,
“Em poucas palavras, é absurdo e seria a maior ingenuidade crer que a natureza
humana, quando se engaja afoitamente em uma ação, possa ser contida pela força da lei
ou por qualquer outra ameaça.” (ibidem, 2001, p. 178). Em seguida outro exemplo
radicalmente representativo deste raciocínio: “Dessa forma as revoluções trouxeram
para as cidades numerosas e terríveis calamidades, como tem acontecido e continuará a
acontecer enquanto a natureza humana for a mesma; elas, porém, podem ser mais ou
menos violentas” (ibidem, 2001, p. 198). E mais espantoso é a seguinte justificativa
para esta visão sobre natureza humana: “não censuro aqueles que desejam dominar, mas
sim os mais ansiosos por submeter-se; na verdade, é ínsito à natureza humana mandar
sempre nos que cedem, como também o é prevenir-se contra aqueles que estão prestes a
atacar” (ibidem, 2001, p. 252). Completando a demonstração deste tipo de mentalidade
nos parece que o trecho abaixo expõe de modo significativo o que Jaeger proferiu:
34
Naquela crise, quando a cidade vivia na mais completa anarquia, a
natureza humana, então triunfante sobre as leis e já acostumada a fazer
mal mesmo a despeito das leis, comprazia-se em mostrar que suas
paixões são ingovernáveis, mais fortes que a justiça e inimigas de toda
superioridade; na verdade, se a inveja não possuísse uma força tão
nociva não se teria preferido a vingança às regras consagradas de
conduta, nem o proveito ao respeito pela justiça. (TUCÍDIDES, 2001,
p. 200)
É este o contexto grego da segunda metade do século V. Os diversos
discursos sobre o homem flutuavam em meio aquele processo de transição. A revolução
antropocêntrica que pôs o homem no centro das discussões trazia em meio a um grande
número de pensadores várias visões sobre o homem. O homem dos relativistas é um
homem tendente ao individualismo. Já o realismo amoral, como vimos anteriormente
defendia a natureza instintiva do homem. Propunha legitimar o poder do mais forte. Era
a partir desta base que muitos pensadores daquele período vislumbravam a formação
humana. O cerne da relação do homem com a coletividade, da postura deste homem em
relação aos demais.
Não podemos abstrair o cenário supra mencionado. Este é o contexto
objetivo em que estava inserida a Grécia de então. As guerras entre gregos, os ataques
de outros povos são fatos que deixavam suas marcas no espírito grego. O pragmatismo
do realismo amoral era uma resposta a fatos reais, espelhava a agrura vivenciada
naquele contexto, porém o período sistemático traz outros elementos a este debate
como, por exemplo, a discussão sobre os elementos da alma humana que encontramos
em Platão. Ela deve ser concebida enquanto resposta a esta situação posta. Sua
postulação em torno da racionalidade não está alienada da vida. É uma resposta aos
pensadores que concebiam de modo diverso a essência humana, afinal era da crença de
uma natureza humana instintiva que se desdobrava toda uma proposta política e social.
2.2 Platão e a primazia da virtude ante a técnica
Platão, na obra “As Leis”, faz uma descrição que se relaciona ao tema
tratado acima. Ele relata certa disposição de espírito de muitos de seus contemporâneos.
É preciso, evidentemente, considerar que as palavras que põe na boca de sua
personagem sejam carregadas de juízo de valor. Afinal Platão opina contra muitos de
seus adversários sofistas, mas é inegável que, de modo geral e junto com outros
35
testemunhos, este trecho sirva para dimensionar o quadro geral da questão à época, de
como a Grécia daquele período lidava com a questão moral e ética:
Todas estas, meus amigos, são opiniões que os jovens absorvem dos
sábios, tanto escritores de prosa quanto poetas, que sustentam que o
justo por excelência é aquele que impõe a força vitoriosa. E disso
resulta que os jovens estão tomados por uma epidemia de impiedade
[...] e, em conseqüência disso, surgem também facções quando esses
mestres ... os atraem rumo à vida que é correta de acordo com a
natureza, o que consiste em ser senhor sobre os outros em termos
reais, em lugar de ser seus servos de acordo com a convenção legal.
[...] Que doutrina horrível descreve, estrangeiro! E que epidemia de
corrupção para os jovens no seio de suas famílias tanto quanto
publicamente no seio dos estados. (PLATÃO, 1999, p. 404).
É, também, Platão que na obra “Górgias” traz o sofista Cálicles opinando
que, “Com abundância de exemplos, ela mostra que as coisas se passam desse modo e
que tanto entre os animais como entre os homens, nas cidades e em todas as raças,
manda a justiça que os mais fortes dominem os inferiores” (PLATÃO, 1973a, p. 504).
Todo este conjunto de concepções, acima relatadas, sobre a natureza humana, na Grécia
do período clássico, foi denominado por Guthrie de “realismo amoral”. Ele prevaleceu
na segunda metade do século V na Grécia e levou o espírito grego a um pragmatismo
sem precedentes. É o retrato traçado por Tucídides. Prevalece, como vimos, um
conceito de natureza humana com ênfase total em seus aspectos instintivos e egoísticos.
É evidente que o problema desta visão é o que disso nasce como corolário. O que se
desdobra socialmente a partir deste pensamento, “no mundo social, assim como
Tucídides o representa, há e só pode haver a justiça que os fortes julgam de seu
interesse sustentar” (MACINTYRE, 2008, p. 78). Diante disto vemos que Platão não
propõe sozinho o palco do debate grego sobre as virtudes e a razão. Ele é fustigado a
debater sobre elementos também estabelecidos por seus contemporâneos. Estes já
haviam eleito uma perspectiva para conceber a alma humana e também a sociedade
humana:
36
Atribuí a Tucídides três teses:
areté é uma coisa e inteligência prática
outra bem diferente, e sua conjunção é mera coincidência; o grau e o
tipo de justiça que se pode haver na ordem social são aqueles que os
fortes poderosos permitem que haja; e a deliberação retórica, tal como
praticadas por aqueles que aprenderam com Górgias e seus discípulos,
é o melhor modo para os seres humanos responderem às questões
relativas ao que se deve fazer. O objetivo dominante da filosofia
política madura de Platão é negar todas essas três teses através de uma
teoria que revele tanto as conexões entre elas como as conexões com
as teses pelas quais deseja substituí-las. O que liga as teses de
Tucídides é uma única pressuposição: os bens de eficácia devem
prevalecer sobre os bens de excelência e esses serão valorizados
apenas à medida que os que valorizam os bens de eficácia permitirem
que o sejam.” (MACINTYRE, 2008, p. 81).
Ou seja, para a mentalidade representada aqui por Tucídides, a virtude em
nada se relaciona com a inteligência prática. Para Tucídides prevalece a técnica a
serviço de uma certa capacidade domínio sobre os demais. A inteligência proposta por
ele é meramente a que possibilita a um homem impor-se pela força. A excelência
humana defendida por este tipo de pensamento em nada se relaciona com a virtude ou a
razão. A não ser que estas estejam subordinadas a este modelo de excelência. Todavia,
“Platão nega esse pressuposto propondo pela primeira vez uma teoria bem-articulada
sobre o que realmente é a excelência humana, e porque é racional, à luz dessa teoria,
sempre subordinar os bens de eficácia aos bens de excelência.” (idem, p. 81). É deste
modo que Platão postula que, “todos os nossos atos devem ser pautados só em vista do
bem [...] o bem deve ser a meta exclusiva de nossos atos e que tudo deve ser feito por
amor dele, não o bem por amor de tudo o mais” (PLATÃO, 1973a, p. 525). E o bem
para Platão se apresenta com a base de um sociabilidade viável. Nenhuma sociedade
que se alicerçar em pressupostos de fundo egoístas poderá sobreviver.
O certo é que, a idéia sobre a natureza egoísta defendida pela tese do
realismo amoral é muito simplória. Apesar de sua casca pragmática ela se monta em
bases simplistas demais, mas por angariar hegemonia dentre grande parcela dos gregos,
Platão é levado a ter que defender que, “Os homens justos são mais sábios, melhores e
mais poderosos do que os homens injustos, e que estes são capazes de agir
harmonicamente” (PLATÃO, 1965, p. 37). É neste rumo que vai a elaboração de Platão.
Cotejando demonstrar que a justiça, equilíbrio e temperança são caracteres de maior
valor para o homem, “Cheguei a convencer-te, a ponto de aceitares a opinião de que os
indivíduos comedidos são mais felizes do que os intemperantes?” (PLATÃO, 1973a, p.
514).
37
Platão traça o debate pondo em destaque o próprio sentido de racionalidade.
Ele põe em evidência que racionalidade não é apenas saber maquinar informações em
sentido pragmático, e sim que ela deve necessariamente se ancorar em uma análise que
contemple de forma mais ampla o universo espiritual humano.
A negação de Platão da primeira tese de Tucídides, que
areté é uma
coisa e a inteligência prática outra bem diferente, baseia-se em
argumentos concebidos para mostrar que sem
areté não se pode ser
racional nem em termos teóricos nem em termos práticos, e que sem
racionalidade não se pode ter
areté. (MACINTYRE, 2008, p. 81).
Não existe racionalidade fora de critérios mais amplos e nem sem uma
investigação dos elementos diferentes que povoam o espírito humano. Nesta
perspectiva, “Platão não apenas propõe um esquema da primeira justificação teórica
sistemática dos bens de excelência, mas também define a diferença mais fundamental
entre si e Sócrates, por um lado, e todo o movimento sofístico por outro.” (idem, p. 86).
Por em discussão os elementos da subjetividade humana naquele contexto era demarcar
posição com a opinião hegemônica até então. Parcela significativa dos pensadores
gregos daquele período, “valoriza os elementos passionais e contingentes na escolha
pragmática do melhor, em vez de nortear as opções morais por princípios racionais e
absolutos.” (SOUSA; PINTO, 2005, p. 17).
Desvendar os elementos da alma é, portanto basilar para esta discussão. É
esclarecendo os elementos da alma que se revela o verdadeiro princípio da natureza
humana, já que esta, segundo Platão, não tem como princípio a natureza egoísta. O
princípio que caracteriza fundamentalmente a alma humana segue exatamente em
sentido contrário. A natureza da alma humana forma a partir da diversidade dos
elementos que compõem esta alma:
Não estaremos equivocados ao considerar que se trata de dois
elementos diferentes entre si e ao denominar aquele pelo qual a alma
raciocina seu elemento racional e aquele por causa do qual ela ama,
tem fome, tem sede e se atira com ímpeto a todos os outros desejos o
seu elemento irracional, que desperta a concupiscência, amigo de
certas satisfações e de certos prazeres [...] distinguimos estes dois
elementos na alma (PLATÃO, 1965, p. 140)
38
E nesta alma composta de elementos diferentes um deles deve ocupar o
papel principal ante os demais: “Não compete à razão mandar, por ser sábia e possuir a
responsabilidade de velar pela alma, à cólera obedecer à razão e defendê-la?”
(PLATÃO, 1965, p. 143). Esta é a idéia de princípio da alma humana que Platão
defende. Como é possível que enfoquemos o aspecto irracional do homem como
comandante de nossa alma, e por conseqüência comandante de nossa vida em
sociedade?
cada um deve comandar a si mesmo. Ou não haverá necessidade de
ninguém comandar-se a si mesmo, mas apenas aos outros? Cálicles —
Que entendes por comandar a si mesmo? Sócrates — Não se trata de
nada abstruso; a esse respeito penso como todo o mundo: ser
temperante e dono de si mesmo, e dominar em si próprio os prazeres e
os apetites. (PLATÃO, 1973a, p. 512)
É evidente que não faz sentido a idéia representada por Tucídides. Platão
nos mostra que tal visão carece até mesmo de uma idéia mais elaborada sobre os
próprios elementos que compõem a alma humana. Na formação de nossa identidade
cultural conceitos basilares como razão e ética não se firmaram sem um forte processo
de disputa hegemônica entre teses de diversos matizes.
2.3 A razão em Aristóteles. Pontos sobre a transição de Aristóteles a Santo Tomás
Aristóteles, junto com Platão, foi motivado pela refutação a certas visões
sobre a natureza humana, “o feito particular de Aristóteles foi, em primeiro lugar,
oferecer um esquema de pensamento no qual as realizações e as limitações de seus
predecessores pudessem ser identificadas e avaliadas” (MACINTYRE, 2008, p. 158,
159). Em sua discussão sobre a racionalidade e a natureza humanas Aristóteles
considera que, “a função própria do homem é um certo modo de vida, e este é
constituído de uma atividade ou de ações da alma que pressupõe o uso da razão”
(ARISTÓTELES, 2001, p. 24-25). A natureza humana pressupõe o uso da razão. É a
racionalidade característica essencial do homem. Característica definidora da espécie
humana. E como resultado de sua natureza, “a função própria de homem bom é o bom e
nobilitante exercício desta atividade ou prática destas ações [...] o bem para o homem
vem a ser o exercício ativo das faculdades da alma de conformidade com a excelência”
39
(ARISTÓTELES, 2001, p. 24,25). Uma vez que, “A excelência humana significa,
dizemos nós, a excelência não do corpo, mas da alma, e também dizemos que a
felicidade é uma atividade da alma.” (idem, p. 32). Este homem racional é capacitado
pela natureza para a convivência na
pólis. A natureza racional é também uma natureza
política:
o homem é um animal cívico, mais social do que as abelhas e outros
animais que vivem juntos. A natureza, que nada faz em vão, concedeu
apenas a ele o dom da palavra, que não devemos confundir com os
sons da voz. Estes são apenas a expressão de sensações agradáveis ou
desagradáveis, de que os outros animais são, como nós, capazes. A
natureza deu-lhe um órgão limitado a este único efeito; nós, porém,
temos a mais, senão o conhecimento desenvolvido, pelo menos o
sentimento obscuro do bem e do mal, do útil e do nocivo, do justo e
do injusto, objetos para a manifestação dos quais nos foi
principalmente dado o órgão da fala. Este comércio da palavra é o laço
de toda sociedade doméstica e civil. (ARISTÓTELES, 2006, p. 5)
Em Aristóteles, a natureza racional do homem está subordinada à sua
natureza política. Na citação acima, vemos que a tarefa de conviver dentro da
pólis é
efetuado por meio de uma comunicação racional e é dentro deste mesmo espírito que se
põe a discussão sobre a razão prática, sendo esta uma disposição, “relacionada com a
escolha de ações e emoções, disposição esta consistente num meio termo [...]
determinado pela razão” (ARISTÓTELES, 2001, p. 42). Para escolher este meio termo
deve-se, “antes de tudo, ser movido por uma crença sobre que é melhor que se realize
aqui e agora. Mas para que o fato de ser movido por essa crença seja algo racional, essa
própria crença deve ser racionalmente fundada; deve ser sustentada por razões
adequadamente boas.” (MACINTYRE, 2008, p. 140). O Estagirita descreve este
processo de escolha assim:
Não é fácil determinar racionalmente até onde e em que medida uma
pessoa pode desviar-se antes de tornar-se censurável [...] tais coisas
dependem de circunstâncias específicas, e a decisão depende da
percepção. Isto é bastante para determinar que a situação intermediária
deve ser louvada em todas as circunstâncias, mas que às vezes
devemos inclinar-nos no sentido do excesso, e às vezes no sentido da
falta, pois atingiremos mais facilmente o meio termo e o que é certo.
(ARISTÓTELES, 2001, p. 47)
Estando claro que a razão prática pretende ordenar hierarquicamente meios
e fins, devemos agora meditar sobre o fim último para o qual se dirigem todos estes
40
esforços, MacIntyre, neste sentido, afirma que, “A tarefa deliberativa da construção
racional é tarefa que leva a uma ordenação hierárquica de meios para seus fins, na qual
o fim último é especificado numa formulação que fornece o primeiro princípio, ou
primeiros princípios, dos quais são deduzidos as afirmações dos fins subordinados que
são meios para o fim último.” (2008, p. 146). A discussão sobre o fim último do homem
em Aristóteles está inegavelmente adstrita a questão da excelência da
pólis. É possível
que neste ponto o Estagirita se afaste de Platão, pois este último, “parece acreditar que
[...] o elemento-chave na virtude do ser humano individual, é independente da justiça
que ordena a
pólis e a antecede.” (idem, p. 109). Enquanto Aristóteles, no tocante à
mesma discussão, “representa uma tradição de pensamento na qual é precedido por
Homero e Sófocles e segundo a qual o ser humano separado de seu grupo social é
também privado da capacidade de justiça.” (ibidem, p. 110). Investigando esta tendência
do pensamento do Estagirita, MacIntyre afirma que:
Quando argumenta no livro no livro I da
Política (1252b28-1253a39)
que ser um humano separado da
pólis fica privado de alguns dos
atributos essenciais a um ser humano. Essa é uma passagem cuja
importância para a interpretação de tudo o que Aristóteles escreveu
sobre a vida humana não pode ser menosprezada, e é também
particularmente crucial para a compreensão de suas afirmações sobre a
justiça, o raciocínio e a relação entre eles. (ibidem, p. 110).
Acompanhando esta linha de raciocínio, o mesmo autor arremata sua
sentença afirmando que para Aristóteles, “Não há racionalidade fora da
pólis” (idem, p.
156). Neste sentido a relação entre natureza racional do homem e
pólis é indissociável,
“foi porque Aristóteles julgava a
pólis como a única forma de Estado que podia integrar
as diferentes atividades sistemáticas dos seres humanos num tipo de atividade geral, no
qual a realização de cada tipo de bem era devidamente reconhecida, que também julgou
que apenas a
pólis poderia ser esse locus. Não há racionalidade fora da pólis” (ibidem,
p. 156). O homem de Aristóteles é o homem dentro da
pólis. Sua discussão sobre
racionalidade humana, destarte tenha o peso de seu pioneirismo junto com Platão, se
dobra à idéia de um vinculo inexorável com a
pólis. Esta vinculação e submissão da
razão do homem à
pólis está na base do jusnaturalismo de Aristóteles. É um ponto
importante para compreendermos a diferença entre o Estagirita e Santo Tomás, pois
veremos que em Aquino a razão sai deste papel secundário que tem em Aristóteles e
passa a ocupar lugar central para o jusnaturalismo.
41
é correto dizer que a filosofia de Aristóteles dá muito mais ênfase à
realidade dos indivíduos do que o faz a filosofia de Platão. No entanto,
em ambas as filosofias, é o universal que importa. Embora as únicas
substâncias reais que ele reconhece sejam os homens, isto é, a forma
específica da humanidade individualizada pela matéria, Aristóteles
considera a multiplicidade dos indivíduos apenas como o substituto da
unidade da espécie. Na falta de uma humanidade que não pode existir
separadamente, a natureza se contenta com estes seus trocados que são
os homens. Cada um de nós nasce, vive por um breve tempo e
desaparece para sempre, sem deixar vestígios; mas que importância
tem isso, se nascem novos homens, que viverão, morrerão e serão por
sua vez substituídos por outros? Os indivíduos passam, a espécie
perdura, de modo que, no fim das contas, o indivíduo que subsiste e
passa só existe para garantir a permanência do que não subsiste, mas
não passa. (GILSON, 2006, p. 255, 256).
Sabemos que os gregos de modo geral concebiam uma ordem presente no
cosmos. Tal ordem também regia a cidade de modo que sua visão sobre a
pólis trazia
uma forte idéia de primazia e naturalidade desta. Esta foi a tônica da primeira tese de lei
natural formulada no período arcaico, como já estudamos, sob a designação básica de
concórdia, onde naturalidade e primazia atribuídas a
pólis sobrepujam a figura do
indivíduo. Vemos, pois, o Estagirita aceitar este ponto como um postulado. Como uma
realidade sobre a qual não estabeleceu nenhuma investigação do campo filosófico. Ele
simplesmente adota esta idéia como uma base fixa de sua tese política e jusnaturalista:
O Estado, ou a sociedade política, é até mesmo o primeiro objeto a
que se propõe a natureza. O todo existe necessariamente antes da
parte. As sociedades domésticas e os indivíduos não são senão as
partes integrantes da Cidade, todas subordinadas ao corpo inteiro [...]
e todas inúteis quando desarticuladas, semelhantes às mãos e aos pés
que, uma vez separados do corpo, só conservam o nome e a aparência,
sem a realidade, como uma mão de pedra. O mesmo ocorre com os
membros da Cidade: nenhum pode bastar-se a si mesmo.
(ARISTÓTELES, 2006, p. 5).
É fato que a antropologia de Aristóteles não põe o homem enquanto objeto
central da natureza, “a antropologia filosófica de Aristóteles não tem a pessoa como
categoria hermenêutica principal, mas sim a cidade.” (BARRERA, 2007, p. 118).
Aquilo que no pensamento cristão descreveríamos como o homem no centro da criação.
É a
pólis o objeto primaz da natureza em Aristóteles: “É, portanto, evidente que toda
cidade está na natureza e que o homem é naturalmente feito para a sociedade política.”
(ARISTÓTELES, 2006, p. 4). O fato de ver a
pólis como centro define profundamente
toda sua tese. Seu jusnaturalismo se calca nisto, compondo uma peça chave em
42
Aristóteles. Neste ponto, para entendermos a discussão em seu todo, se faz necessário
observarmos a própria idéia de natureza do Estagirita, pois, “Aristóteles não se priva de
um uso implícito da noção de natureza nos pontos mais importantes de seu pensamento
político, ou seja, quanto à origem e sobretudo ao fim da comunidade política, e no
referente ao fundamento da ordem que deve reinar nela.” (BARRERA, 2007, p. 118).
Em sua noção de natureza Aristóteles concebe que:
a natureza de cada coisa é precisamente seu fim. Assim, quando um
ser é perfeito, de qualquer espécie que ele seja - homem, cavalo,
família -, dizemos que ele está na natureza. Além disso, a coisa que,
pela mesma razão, ultrapassa as outras e se aproxima mais do objetivo
proposto deve ser considerada a melhor. Bastar-se a si mesma é uma
meta a que tende toda a produção da natureza e é também o mais
perfeito estado. (ARISTÓTELES, 2006, p. 4).
É imprescindível notar que neste tipo de discussão que o Estagirita está
efetuando ao pensar a questão da natureza das coisas, “Aristóteles não trata este estudo
com intenção primariamente filosófica, mas com intenção prática do início ao fim.”
(BARRERA, 2007, p. 109). Esta, assim chamada, intenção prática é sem dúvida uma
chave para compreender a questão. Aristóteles recebe do período arcaico a noção de
centralidade da
pólis e isto é simplesmente aceito por ele. Como já afirmamos, não se
encontra no Estagirita esboço de discussão sobre isto. É algo que basicamente ele tem
como certo. Além deste postulado, há outro que se soma a ele: é a idéia sobre a natureza
de cada coisa. Este segundo ponto vem calcar e solidificar ainda mais o primeiro. Toda
análise de Aristóteles decorre tendo por base estas duas teses centrais. A
pólis é o centro
da vida e a natureza de cada coisa é seu fim. A falta de disposição de discutir estes
pontos são determinantes para o corolário da discussão de natureza em Aristóteles, “A
identificação do fim com a forma é característica da concepção aristotélica de uma
natureza enclausurada dentro de seus próprios limites ontológicos, e isso vale tanto para
a substância natural como para a ordem da cidade.” (idem, p. 126). Diante destas
concepções iniciais do Filósofo, o que decorre é que:
A natureza fica assim prisioneira de sua própria finalidade imanente, e
nenhuma das produções do ente natural será dirigida a uma instância
superior à da própria ordem natural. Por essa razão, a comunidade
política, enquanto também é fruto da natureza humana, tampouco é
ordenada a nenhuma coisa que não seja a sua própria plenitude como
comunidade política. (ibidem, p. 120)
43
Este é o limite de Aristóteles. E toda visão sobre natureza estará relacionada
à tese já citada. Aristóteles assim subordinará a natureza política e racional do homem à
natureza da
pólis. Ele não consegue sistematizar de forma coerente estas idéias sobre
natureza: natureza humana, natureza da lei e natureza da
pólis, a não ser ao colocá-las a
serviço da primazia da
pólis. Dentro deste mesmo pensamento encontramos a discussão
sobre a lei natural. O costume desta
pólis é a fonte do direito natural. Mas Aristóteles
não vincula o costume da
pólis a uma anterior prática do homem. Ele cala em relação à
gênese deste costume. E apesar do costume ocupar um posto tão elevado a ponto de
elencar a lei política da
pólis, o Estagirita não submete este costume a uma análise mais
crítica. Além de não debater o surgimento ou a fonte do costume ele também não revela
de que modo este costume, enquanto lei natural, passa ter poder vinculante das
condutas. Se o costume é a lei, então, ele tem poder normativo, mas não há
desenvolvimento deste tópico em Aristóteles, fato que vem a ser explicado por sua
definição sobre a natureza primaz da
pólis. De certa forma este costume pertence a esta
pólis
que é primaz e é sobreposta ao indivíduo. Podemos pensar mesmo que este
indivíduo se liga a este costume sem ter participação ativa na formação ou aprovação
deste enquanto norma. Resulta, desta forma de pensar, de Aristóteles uma idéia
excludente sobre o homem. Um exemplo insigne disto é que, em Aristóteles, se possa
falar da felicidade sem vincular esta ao indivíduo. É uma felicidade da
pólis, podendo
mesmo alguns indivíduos jamais compartilharem desta felicidade:
O Estado ou Cidade é uma sociedade de pessoas semelhantes com
vistas a levar juntas a melhor vida possível. Sendo, portanto, a
felicidade o maior bem e consistindo no exercício e no uso perfeito da
virtude, e sendo possível que alguns participem muito dela e outros
pouco ou absolutamente nada, esta diversidade teve necessariamente
que produzir várias espécies de Estados e de governos, segundo o
gênero de vida e os meios que cada povo emprega para alcançar o
bem-estar. (ARISTÓTELES, 2006, p. 96).
Acima podemos identificar a presença da idéia de cidadania excludente,
bastante comum aos gregos. Dentro da lógica de Aristóteles é possível alijar indivíduos
da esfera de ordenamento da lei sem que isto seja um problema. Apenas os possuidores
do título de cidadania desfrutam dos benefícios da isonomia da
pólis, “o justo em
sentido político [...] se apresenta entre pessoas que vivem juntas com o objetivo de
assegurar a auto-suficiência do grupo – pessoas livres e proporcionalmente ou
aritmeticamente iguais. Logo, entre pessoas que não se enquadram nesta condição não
44
há justiça política, e sim a justiça em um sentido especial e por analogia.”
(ARISTÓTELES, 2001, p. 102). Dentro da mesma ótica encontramos também a
discussão sobre a escravidão natural, “desde o primeiro instante do nascimento, são, por
assim dizer, marcados pela natureza, uns para comandar, outros para obedecer. [...] os
que não têm nada melhor para nos oferecer do que o uso de seus corpos e de seus
membros são condenados pela natureza à escravidão.” (ARISTÓTELES, 2006, p. 12-
13).
Para começarmos a estabelecer o contraponto entre autores, vejamos a
opinião de Aquino sobre o mesmo tema: “considerando de maneira absoluta, não há
razão natural para que este homem seja escravo, mais do que um outro, mas só por uma
utilidade conseqüente, enquanto seja vantajoso a um ser governado por um mais sábio, e
a este ser ajudado por aquele” (S. T., II-II, q. 57, a. 3). Apesar de trabalhar basicamente
os mesmos elementos que Aristóteles, Santo Tomás o faz em perspectiva totalmente
distinta. Apesar de ainda legitimar a escravidão ele a põe em um contexto esvaziado de
justificação. Ele não atinge frontalmente o estatuto da escravidão, no entanto lhe solapa
as bases ao voltar sua justificação para a necessidade do escravo e não mais para o
direito inato de quem o escraviza. A natureza da escravidão é invertida.
Isto ocorre devido ao alicerce sobre o qual se montam as teorias, pois, “Nem
Platão nem Aristóteles [...] tinham uma idéia suficientemente elevada do valor do
individual” (GILSON, 2006, p. 254). Tal postulado grego distava do imaginário do
cristianismo, “Podemos ver facilmente quando essa fragilidade e essa depreciação do
individual deviam chocar o sentimento cristão do valor permanente das pessoas
humanas” (idem, p. 256). Mas apesar de os gregos não afirmarem, salvo exceções, o
valor individual, também não o refutaram e, “por nunca terem negado a realidade do
individual, os gregos possibilitaram o reconhecimento do valor eminentemente da
pessoa pelo cristianismo.” (ibidem, p. 254). Deste modo é que Aquino inverte a
sentença aristotélica de que: o homem é uma parte e cada parte se ordena ao todo, para o
Doutor Angélico este todo ou esta comunidade não tem a conotação primaz que tem a
pólis
em Aristóteles, “o homem não se ordena à comunidade política segundo toda a sua
pessoa e todas as suas coisas, e por isso não convém que todos os seus atos sejam
meritórios ou demeritórios com relação à comunidade política.” (S. T., I-II, q. 21, a. 4).
Em Aquino o todo existe em função das partes. A cidade não existe por si, mas existe
45
para benefício de todas as partes que a compõem. E deste modo importa essencialmente
que as partes ou os homens sejam acolhidos beneficamente, não por que sejam cidadãos
que mantém a cidade, mas porque são o centro legítimo da vida.
Como toda parte se ordena ao todo como o imperfeito ao perfeito e
cada homem é parte da comunidade perfeita, é necessário que a lei
propriamente vise à ordem para a felicidade comum. Por isso, o
Filósofo, na anteposta definição do legal, faz menção tanto da
felicidade quanto da comunhão política. Diz, com efeito, no livro V da
Ética
que ‘dizemos justas as disposições legais que fazem e
conservam a felicidade e as partes dessa, na comunicação política’; a
perfeita comunidade, com feito, é a cidade, como diz o Filósofo no
livro I da
Política. (S. T., I-II, Q. 90, a. 2)
Temos, no trecho acima, um exemplo claríssimo de como Santo Tomás
reorienta a idéia aristotélica levando-a para outro norte que não é o do próprio
Aristóteles. Uma primeira informação de grande valia para percebermos o sentido desta
mudança é observar a dimensão em que o pensamento cristão concebe o homem. E na
verdade este homem ou indivíduo é entendido enquanto centro da criação divina. As
próprias escrituras judaico-cristãs testemunham esta centralidade: “Então Deus disse:
‘Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre os peixes do
mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra, e sobre
todos os répteis que se arrastem sobre a terra.” (Gn., 1, 26-27). Embasado por este
postulado cristão, Aquino busca na natureza encontrar a chave desta centralidade
humana: “Santo Tomás faz da natureza um verdadeiro ponto de partida para a
compreensão filosófica da vida humana” (BARRERA, 2007, p. 109). É por isso que ele
conjuga os elementos herdados de Aristóteles voltando estes na perspectiva do
indivíduo. A lei natural que antes existia concomitantemente a natureza do homem,
agora existe em função desta natureza humana: “No homem se encontra de certo modo
todas as coisas. Por isso, ao modo pelo qual domina sobre as coisas que nele estão
corresponde o modo pelo qual domina as outras coisas.” (S. T., I, q. 96, a. 3). Neste
sentido então, entendemos que a lei eterna ou ordem do cosmos que para os gregos se
expressava diretamente na
pólis, em Aquino é percebida de outro modo, pois a
expressão desta lei eterna não está mais gravada na ordem da cidade. Ela agora está
assinalada no homem que é o ápice e centro da criação:
46
é manifesto que toda a comunidade do universo é governada pela
razão divina. E assim a própria razão do governo das coisas em Deus,
como existindo no príncipe do universo, tem razão de lei. E porque a
razão divina nada concebe no tempo, mas tem o conceito eterno, como
é dito no livro dos provérbios, segue-se que é necessário que tal lei
eterna seja dita eterna. (...) Por isso, como todas as coisas que estão
sujeitas à providência divina, são reguladas e medidas pela lei eterna,
como se evidencia do que foi dito, é manifesto que todas participam,
de algum modo, da lei eterna, enquanto, por impressão dessa têm
inclinações para os atos e fins próprios. Entre as demais, a criatura
racional está sujeita à providência divina de um modo mais excelente,
enquanto a mesma se torna participante da providência, provendo a si
mesma e aos outros. Portanto, nela mesma é participada a razão
eterna, por meio da qual tem a inclinação natural ao devido ato e fim.
E tal participação da lei eterna na criatura racional se chama lei
natural. (S. T., I-II, Q. 91, a. 1, a. 2)
Em Aquino a lei natural está relacionada com a razão, “a luz da razão
natural, pela qual discernimos o que é o bem o mal, que pertence à lei natural, nada mais
seja que a impressão da luz divina em nós
. Daí se evidencia que a lei natural nada mais
é que a participação da lei eterna na criatura racional.” (S. T., I-II, Q. 91, a. 2).
Concebemos a lei eterna agora contando que esta se vincula ao homem e é dele que
surge para a cultura a lei natural. Ela não surge diretamente na cidade ou Estado, mas é
o indivíduo a fonte originária da lei natural, visto que a lei natural é no homem a
inscrição e participação na lei eterna.
Aristóteles trabalhou basicamente os mesmos elementos que Aquino, a
saber: razão e lei natural. Entretanto ele não os conjuga da mesma forma. Para
Aristóteles a lei natural tem como fonte o costume, a lei natural para ele é basicamente o
costume relativo à isonomia na
pólis; no entanto não vemos Aristóteles conformar razão
humana e lei natural. Em síntese, ele não faz tal ligação e não explica por que o costume
se justifica diante do “tribunal da razão”. Para Aquino, “A razão no homem ocupa o
lugar do que domina, e não do que está submetido a dominação.” (S. T., I, q. 96, a. 3).
Afinal, “Somente Deus age criando. Como a alma racional não pode ser produzida por
transformação de alguma matéria, não pode ser produzida imediatamente senão por
Deus.” (S. T., I, q. 90, a. 3). É perceptível esta mudança efetuada por Santo Tomás em
sua definição sobre a essência da lei: “a definição de lei, que não é outra coisa que uma
ordenação da razão para o bem comum, promulgada por aquele que tem o cuidado da
comunidade.” (S. T., I-II, Q. 90, a. 4). Aquino vincula a lei ao indivíduo. É a razão
presente no homem a fonte de onde nascerá o ordenamento jurídico. Ela não está mais
em uma relação exterior ao homem, mas sim, em profundo vínculo com este. Mesmo
47
citando Aristóteles percebemos que Aquino dá um novo sentido à idéia do Estagirita,
“A regra e a medida dos atos humanos é, com efeito, a razão, a qual é o primeiro
princípio dos atos humanos, como se evidencia do que já foi dito; cabe com efeito, à
razão ordenar ao fim, que é o primeiro princípio do agir, segundo o Filósofo.” (S. T., III,
Q. 90, a. 1). Aristóteles debateu com certeza a racionalidade humana, mas não lhe
reputou a condição de fonte da lei política. Em Aquino esta fonte está no homem e está
na razão devido a centralidade que o homem ocupa no mundo e na formação da cultura
e dos costumes.
Santo Tomás traz um elemento inovador. Ele via que esta ordenação da
razão para o bem comum deve ser instituída. Em suas palavras deve ser promulgada, ou
seja, não há um automatismo quanto ao poder vinculante da lei. A lei para se integrar
enquanto norma válida e coativa deve passar por um processo positivo de promulgação.
O indivíduo é mais uma vez incluído no processo normativo, pois além de ser da razão
do conjunto dos indivíduos que ela provém, esta coletividade também deve, para a
validação desta lei, instituí-la formalmente, outorgando-lhe, a partir de si, poder dentro
da sociedade. A lei não tem poder ou valor por si, tem por aprovação do conjunto dos
indivíduos. Este tema será tratado em detalhe no próximo capítulo.
48
3 O JUSNATURALISMO EM TOMÁS DE AQUINO
3.1 As linhas gerais do jusnaturalismo tomista
Em Tomás de Aquino o jusnaturalismo ganha uma forma sistemática.
Tornar a idéia jusnaturalista um sistema vem a esclarecer algo que não estava
satisfatoriamente resolvido em outros autores. Aquino mostra que a teoria de lei natural
se resolve a partir da compreensão das diferentes dimensões nas quais, esta, se expressa.
Para melhor entender o porquê deste sistema tomemos mais uma vez o exemplo de
Aristóteles, que para tratar do tema natureza constrói diversas teses. A primeira é sobre
a lei natural identificada com o costume da
pólis; a segunda está na discussão sobre a
chamada natureza humana. Esta é entendida por ele como sendo inerentemente política
e racional. Em terceiro lembremos que Aristóteles possui também uma idéia sobre a
natureza do cosmos, na qual metaforicamente compara a divindade com um oleiro, “ou
melhor, de um fabricador artista (sabe-se que Aristóteles comparava-o com as
produções de um oleiro, que molda a argila a fim de lhe dar uma forma).” (VILLEY,
2009, p. 48). Para ele seria este, o primeiro motor da vida.
Encontramos estas concepções sobre a natureza da lei, do homem e do
cosmos em Aristóteles; entretanto não o vemos estabelecer uma clara relação entre as
mesmas a não ser quando diz que a natureza de cada coisa é seu fim, mas na prática isto
não estabelece uma coerência entre suas teses. A questão básica em Santo Tomás é que
ele aceitará estas categorias, porém reinterpretando-as sob nova ótica. Ele buscará
estabelecer entre estas uma relação definida, coisa que o Estagirita não fez, e para fazêlo
é que se faz preciso estabelecer um sistema.
Em sua abordagem ao jusnaturalismo na “Suma Teológica”, ele nos
esclarece sobre estas dimensões do fenômeno em questão. É nas questões 90 e 91da I
seção da II parte que Aquino define e sintetiza a tese de lei natural que esclarecerá pelas
demais questões. Na introdução da questão 90 ele diz: “A respeito da lei, primeiramente
é preciso considerar a própria lei em geral; depois, as partes dela [...] a diferença das
leis” (S. T. I-II, Q. 90). Na introdução da questão 91, já mencionada acima, ele vai
elencar as diversas dimensões da lei, “Deve-se considerar a diversidade das leis [...] 1.
Há alguma lei eterna? 2. Uma lei natural? 3. Uma lei humana?” (S. T. I-II, Q. 91).
Portanto, o fenômeno jusnaturalista pode ser melhor entendido se for analisado em suas
49
diferentes esferas. E cada dimensão será explicada por Santo Tomás, conseguindo no
todo efetuar a ligação que há entre cada dimensão do fenômeno. Com Aquino há,
portanto, três momentos ou estágios pelos quais passa o fenômeno jusnaturalista. O
jusnaturalismo é um conjunto no qual encontramos as dimensões: lei eterna, lei natural e
direito natural. Com cada uma destas expressões significando uma parte distinta do
fenômeno. Distinta, entretanto coligada. Veremos que em Aquino o entendimento sobre
a lei natural difere em muito de Aristóteles exatamente pelo entendimento do que
podemos chamar visão sobre o conjunto do fenômeno. É algo que aprofundaremos
adiante.
O primeiro nível da tese jusnaturalista dá conta de que ao mundo subjaz
uma ordem. Esta dimensão é representada pela idéia de lei eterna. Uma segunda de que
esta ordem se apresenta no homem por meio da lei natural. A lei natural é um processo
que envolve razão e inclinações primárias da natureza humana. Este processo é
responsável por gestar o primeiro princípio da razão prática. E uma terceira, que é a
dimensão humana da lei. Esta dimensão é mais propriamente chamada de direito
natural. O direito natural é a versão jurídica do jusnaturalismo mais geral. Como o
próprio nome já revela, trata-se do naturalismo direcionado para a questão legal ou
jurídica. Portanto, a fim de entendermos, a contento, a questão do jusnaturalismo em
Aquino é necessário compreender que nele há uma distinção fundamental entre estes
três institutos: lei eterna, lei natural e direito natural. Cada um destes termos se reporta a
uma específica e diferente dimensão do jusnaturalismo. Não é por acaso que temos dois
momentos diferentes para falar de direito e de lei na “Suma Teológica”. E também não é
sem propósito que, em regra, no “Tratado das leis”, Aquino usa os termos
lex naturalis
ou
legem naturalis ao referir-se a lei natural. Já no “Tratado da justiça” ele usa o termo
jus naturalis
, ou derivados deste para tratar do direito natural.
A sentença apropriada sobre a questão seria posta nestes termos: entender o
jusnaturalismo em Aquino é discernir o que é dito sobre “lei eterna”, “lei natural” e
também sobre “direito natural”, cada qual em sua realidade. Tirar conclusões sobre o
jusnaturalismo em Aquino, sem entender tal distinção conduz a uma visão incompleta
da teoria. O ponto central de sua lei natural é a idéia de “sindérese”, que é o processo
que dá vida ao comportamento humano. Esta tese dá desdobramento ao pensamento
aristotélico quanto à natureza racional do homem. Quanto ao direito natural, o ponto
principal está na idéia de direito das gentes que é a versão tomista da lei política e
constitucional de Aristóteles. Santo Tomás portanto herda,como dissemos, certos
50
tópicos de Aristóteles, entretanto veremos a seguir que o modelo estrutural moldado por
Aquino difere e se afasta em muito da visão do Estagirita. No capítulo discutimos
elementos relacionados a lei eterna em Aquino, relacionando-a com a antropologia
presente neste autor, a seguir trataremos sobre os conceitos tomistas de lei natural e
direito natural.
3.2 Sobre a idéia de Lei natural em Santo Tomás
Como antes já foi dito sobre a tese de lei natural de Aquino, a idéia de razão
humana ocupa lugar central nesta. A razão dentro do jusnaturalismo tomista, exerce sua
função basilar desdobrando-se sobre determinados elementos que também compõem
este processo de gestação da lei natural. A razão neste momento não está alienada da
vida. Não serão elementos da mera subjetividade que irão balizar o julgamento da razão.
Tomás de Aquino esclarece em que contexto a função racional executará seu processo
de discernimento, de onde ela partirá inicialmente: “a razão prática usa de certo
silogismo nas obras a realizar [...] de acordo com o que ensina o Filósofo, assim cumpre
achar algo na razão prática que esteja para as operações como a proposição está, na
razão especulativa, para as conclusões.” (S. T., I-II, Q. 90, a. 1). Notemos que Aquino
molda sua teoria dos primeiros princípios da razão prática tendo por base e fundamento
a mesma lógica utilizada por Aristóteles para definir o primeiro princípio da razão
especulativa: “Os preceitos da lei da natureza se têm em relação à razão prática como os
princípios primeiros das demonstrações se têm em relação à razão especulativa: uns e
outros são princípios conhecidos por si.” (S. T., I-II, Q. 94, a. 2). Assim ele explicita seu
raciocínio sobre a construção desta teoria:
Naquelas coisas, porém, que caem na apreensão de todos, acha-se
certa ordem. Com efeito, o que por primeiro cai na apreensão é o ente,
cuja intelecção está inclusa em todas aquelas coisas que alguém
apreende. E assim o primeiro princípio indemonstrável é que ‘não se
pode afirmar e negar ao mesmo tempo’
, que se funda sobre a razão de
ente e não ente, e sobre esse princípio todas as outras coisas se
fundam, como se diz no livro IV da Metafísica. (S. T., I-II, Q. 94, a. 2)
O próximo passo é estabelecer que princípios estejam para a razão prática,
como o princípio da não contradição está para a razão especulativa. Com a articulação
dos primeiros princípios da razão prática, talvez o Aquinate consiga, inclusive, vencer
questões abertas por outros pensadores: “Se Platão e Aristóteles falharam ao articular os
51
primeiros princípios substantivos da razão prática, e se Kant os negligenciou em favor
das noções humeanas de motivação, que dominaram a ética durante o iluminismo (e
desde então), a articulação de tais princípios por Tomás de Aquino merece atenção.”
(FINNIS, 2007, p. 34).
Na teoria de Santo Tomás, “Assim como o ente é o primeiro que cai na
apreensão de modo absoluto, assim o bem é o primeiro que cai na apreensão da razão
prática, que se ordena à obra” (S. T., I-II, Q. 94, a. 2). O bem é este primeiro princípio
da razão prática. Esta idéia em Santo Tomás tem a máxima importância, pois está na
base de sua tese tanto de lei natural como de direito natural. Este primeiro princípio é
uma ponte de ligação entre o universo individual e o universo social. Evidentemente
que não se concebe o “bem” no sentido em que se refere Tomás de Aquino com a
compreensão comum do termo. Para entender como esta idéia de “bem” se articula na
tese tomista devemos estudar o famoso conceito de “sindérese”, pois ele é a base para o
entendimento da questão. Antes de entrar na discussão do que é propriamente a
“sindérese”, vejamos primeiro uma explicação histórica sobre a formação deste termo:
Originalmente, ‘
conscientia’ era a tradução latina de ‘syneidesis’. A
distinção entre ‘conscientia’ e ‘synderesis’ surgiu nos comentários
sobre a interpretação de S. Jerônimo da história bíblica de Caim em
Gn 4. Jerônimo propunha tanto que Caim, nas suas ações más,
continuava tendo uma consciência, isto é, que sabia que o que estava
fazendo era errado, como também, entretanto, que em alguns casos as
pessoas que fazem ações más são capazes de, com o tempo, obliterar a
consciência de que estão fazendo é errado. Desse modo, os
comentadores queriam uma palavra para aquilo que é indelével, que
sobrevive mesmo no pior ser humano, para distingui-lo da consciência
do bem e do mal que pode ser suprimida, ‘synderesis’ sendo utilizada
para o primeiro, ‘conscientia’ para a segunda (MACINTYRE, 2008, p.
202)
Como já dissemos a idéia de “sindérese” está na base da tese tomista de lei
natural. Precisamos nos deter no processo descrito por Santo Tomás que dá conta do
surgimento da lei natural para compreender de que trata a “sindérese”. Este é um
processo que envolve de um lado a razão e de outro o primeiro princípio da razão
prática. Entretanto é importante saber que, “Na opinião de Tomás de Aquino, a razão
prática tem tanto um primeiro princípio absoluto, quanto muitos primeiros princípios
verdadeiros” (FINNIS, 2007, p. 34). Este fato tem trazido certa confusão a alguns
estudiosos da lei natural em Aquino. Primeiro por procurarem uma lei natural, como se
procurassem uma norma em particular, sendo a lei natural um processo natural mais que
52
uma lei ou comando estrito. E segundo, por não entenderem que o que se chama
primeiro princípio se trata de um elemento objetivo que origina-se de uma fonte
múltipla. Esta fonte é denominada de inclinação natural.
As inclinações estão presentes na vida objetiva e não na vida mental do
homem. Tais serão percebidas pela razão. É a partir da interação entre razão e
inclinações que se gesta a lei natural, comum a todos os homens, de buscar o bem e
evitar o mal. Esta lei ocorre em cada ser humano por uma contingência da natureza do
próprio homem. Vejamos esta idéia ao analisar o rol, destas inclinações, definido por
Santo Tomás. Em primeiro lugar ele concebe que, “pertencem à lei natural aquelas
coisas pelas quais a vida do homem é conservada, e o contrário é impedido.” (S. T., I-II,
Q. 94, a. 2). É uma lei natural que o ser humano busque a sobrevivência e não a morte.
Esta lei primária é percebida pela razão como um bem. Não será esta uma idéia bastante
lógica? Se a razão não percebesse como um bem a sobrevivência, nossa raça não mais
existiria.
Ora, quanto a esta primeira inclinação, mesmo quem não concordar com a
tese tomista tem de concordar no mínimo que a própria existência da humanidade
depende da relação entre o instinto de sobrevivência e a razão. Não fora estes atributos
humanos o homem não mais existiria por sobre a terra. Mesmo os estudos de psicologia
reconhecem a existência deste instinto descrito por Santo Tomás. No caso da segunda
inclinação, que dá conta da união entre gêneros para a sobrevivência da espécie dá-se o
mesmo caso, onde tal instinto em regra é denominado instinto sexual.
Em segundo lugar, é inerente ao homem a inclinação a algumas coisas
mais especiais, segundo a natureza que tem em comum com os outros
animais. E segundo isso, dizem-se ser da lei natural aquelas coisas
‘que a natureza ensinou a todos os animais’, como a união macho e da
fêmea, a educação dos filhos, e semelhantes. (S. T., I-II, Q. 94, a. 2)
A segunda inclinação básica se relaciona com sobrevivência do homem
enquanto espécie. Esta inclinação conduz o homem a um primeiro nível de
sociabilidade elementar. Uma interação que nasce da premissa básica de ter o homem
que reproduzir a espécie e dotar-lhe de caracteres básicos a esta própria sobrevivência.
Em terceiro lugar é inerente ao homem a inclinação ao bem segundo a
natureza da razão, que lhe é própria, como ter o homem a inclinação
natural para que conheça a verdade a respeito de Deus e para que viva
em sociedade
. E segundo isso, pertencem à lei natural aquelas coisas
que dizem respeito a tal inclinação, como que o homem evite a
53
ignorância, que não ofenda aqueles com os quais deve conviver, e
outras coisas semelhantes que a isso se refere. (S. T., I-II, Q. 94, a. 2)
A terceira inclinação dentro desta clara progressão onde primeiro importa a
sobrevivência pessoal, depois a da espécie e depois da sociedade nos remete
inevitavelmente a tese Aristotélica do homem como animal político. De certa forma as
duas primeiras inclinações são degraus para chegar a esta terceira inclinação. Eis uma
idéia que pode ser questionada de várias formas: a idéia do homem como animal
político. Entretanto há algo difícil de questionar, pois que o homem como animal
individual possa prescindir desta tese é um fato; mas que a humanidade enquanto tal
possa fazê-lo é impossível. A humanidade somente se desenvolveu em função da vida
em coletividade e não há nenhuma experiência que mostre em contrário. Uma detalhe
importante é que o processo descortinado por Aquino o leva a mesma conclusão de
Aristóteles, de que o homem é um animal social, entretanto a perspectiva aplicada por
Aquino dista grandemente da do Filósofo. Para o Estagirita o homem é um animal
político por ter esta
pólis, primazia diante dele. No roteiro demonstrado por Santo
Tomás o homem é que, sendo naturalmente político, ocupa centralidade no processo,
pois é dele e por ele que a cidade nasceu, para sobrevivência e aprimoramento do
homem e não o contrário.
Após conhecermos o rol das principais inclinações naturais vejamos uma
informação de Santo Tomás que é primordial para compreendermos o processo da lei
natural: “Segundo, pois, a ordem das inclinações naturais, dá-se a ordem dos preceitos
da lei da natureza.” (S. T., I-II, Q. 94, a. 2). Ou seja, os preceitos são oriundos da
relação entre razão e inclinação. É essencialmente desta relação dialética entre razão e
inclinações que brotam os preceitos da lei. É uma opinião existente entre estudiosos do
tomismo que, “Tomás de Aquino negligencia esclarecimentos de como estes primeiros
princípios são compreendidos.” (FINNIS, 2007, p. 36). Podemos, entretanto observar na
escrita de Aquino a revelação de certos passos fundamentais para esta compreensão,
“Pois é inerente ao homem, por primeiro, a inclinação para o bem segundo a natureza
que tem em comum com todas as substâncias, isto é, conforme cada substância deseja a
conservação de seu ser de acordo com sua natureza.” (S. T., I-II, Q. 94, a. 2). Os
preceitos não são escolhas ou raciocínios. Tomás de Aquino os concebe enquanto uma
apreensão natural. Aquino pode ser acusado de tentar retirar “dever” daquilo que é o
“ser”, “Tomás de Aquino considera cada um dos primeiros princípios práticos como
54
auto-evidentes [...] ele não pensa, não obstante, que eles sejam intuições sem conteúdo
[...] refuta a acusação ou a suposição comum de que sua ética tenta invalidamente
deduzir ou inferir dever do ser.” (FINNIS, 2007, p. 35). É a estes preceitos que na tese
tomista se chama “sindérese”; esta é, “a disposição natural manifesta na nossa
apreensão mais básica desses preceitos, que nós não compreendemos como resultado da
pesquisa porque um conhecimento de sua verdade já está pressuposto em toda atividade
prática.” (MACINTYRE, 2008, p. 201).
Os preceitos da lei, que nasceram da relação entre razão e inclinação não
podem ser considerados uma escolha. Sem dúvida, eles são um fruto, mas não se
perfazem enquanto uma opção. Vejamos por exemplo a seguinte sentença: a
humanidade existe. E isto se relaciona com o preceito vinculado a primeira inclinação
que acima foi anotada. Mas isto não é uma opção da humanidade, ela não escolhe entre
existir e não existir. A natureza determina que ela exista no sentido de cuidar de sua
própria sobrevivência: “Os primeiros princípios indemonstráveis em todo o campo do
conhecimento humano são conhecidos apenas pelo insight (intellectus) dos dados da
experiência” (FINNIS, 2007, p. 35). A apreensão dos preceitos é natural, por isso são
inclusos no processo da lei natural. “Ele não está apelando para a qualidade psicológica
da evidência ou para a intuição” (MACINTYRE, 2008, p. 201). O que acontece na
verdade é aquilo que se pode chamar de constrição da razão:
O primeiro princípio absoluto [...] expressa, pode-se dizer, a
constrição da razão. E está, assim, tão longe de ser vazio de
significado e força, que sua forma pode ser considerada como a
estrutura, e sua normatividade a fonte, para toda a normatividade dos
primeiros princípios substantivos e dos princípios morais que são
inferíveis deles. Tomás de Aquino articula isso como “o bem é para
ser perseguido e feito, e o mal evitado”. [...] Tomás de Aquino diria
que, assim como a constrição da razão articulada no princípio de não
contradição tem sua fonte na estrutura da realidade – na real oposição
entre o ser e o não ser - da mesma forma, a fonte da equivalência do
primeiro princípio prático é a desejabilidade real dos bens inteligíveis
a indesejabilidade do que não é bom. (FINNIS, 2007, p. 34).
É processo que Santo Tomás assim descreve, “Porque o bem tem razão de
fim, e o mal, razão do contrário, daí é que todas aquelas coisas para as quais o homem
tem inclinação natural, a razão apreende como bens, e por conseqüência como obras a
ser procuradas, e as contrárias dessa como males a serem evitados.” (S. T., I-II, Q. 94, a.
2). É deste raciocínio que nasce o tão famoso primeiro princípio da lei natural:
55
todo agente, com efeito, age por causa de um fim, que tem a razão de
bem. E assim o primeiro princípio na razão prática é o que se funda
sobre a razão de bem que é ‘Bem é aquilo que todas as coisas
desejam
’. Este é, pois, o primeiro princípio da lei, que o bem deve ser
feito e procurado, e o mal, evitado. (S. T., I-II, Q. 94, a. 2)
O primeiro princípio é a pedra fundamental sobre a qual se fundam todas as
conclusões secundárias: “E sobre isso se fundam todos os outros preceitos da lei da
natureza, como, por exemplo, todas aquelas coisas que devem ser feitas ou evitadas
pertencem aos preceitos da lei de natureza” (S. T., I-II, Q. 94, a. 2). Este primeiro
princípio por si só não é a lei natural. A lei natural dá conta de que a razão realiza uma
operação de perceber como bens as inclinações naturais, “a razão prática naturalmente
apreende ser bens humanos.” (S. T., I-II, Q. 94, a. 2). Ou seja, o que denominamos lei
natural na verdade é um processo que dá conta de que a razão prática em articulação
com os primeiros princípios ou inclinações naturais gestará conclusões que serão base
para o mundo cultural ou dos costumes. São estes costumes a fonte onde se buscará o
direito humano. Desvela-se um processo sobre o qual Aristóteles se calou. Apesar de
dotar o costume de uma importância crucial, o Estagirita não analisou nem justificou
sua gênese. O costume nele independia do homem. E já em Aquino constatamos este
costume nasce a partir do homem.
É importante entender que a lei natural em Tomás de Aquino não é uma lei
em sentido jurídico, ou mesmo não é uma lei em sentido positivo. Estudaremos no
tópico seguinte que a lei natural não gera um conteúdo vinculante. A lei natural é um
processo objetivo gravado no homem, na humanidade, e não é isento de certa valoração.
Podemos chamá-lo de valorativo à medida que ele inclina à cultura humana em certo
sentido, a que Aquino define como procurar o bem e evitar o mal. É um engano pensar
que esta lei natural, esteja isenta de outros processos também chamados racionais. A lei
natural é um primeiro motor do costume, ela é apenas a semente daquilo que Aquino
concebe como direito natural; é a conclusão segunda nascida a partir do primeiro
princípio. Para o Aquinate, “qualquer juízo moral ou prático falso, que toma o bem pelo
mal, se examinado suficientemente, acabará por se revelar derivativo, mesmo que
inicialmente não aparente sê-lo.” (MACINTYRE, 2008, p. 201). O pensamento de
Aquino concebe que qualquer conclusão segunda oriunda da lei natural precisará se
legitimar socialmente por meio da instituição formal ou promulgação. Isto retira
56
qualquer pretensão ou suposição de que a lei natural possa ser utilizada como
instrumento ideológico manipulado por interesses políticos menores.
3.3 O direito natural
3.3.1 A lei humana como fruto da lei natural
Já sabemos que na construção da tese jusnaturalista de Santo Tomás existe
uma diferenciação fundamental entre a lei natural e o direito natural. No tópico anterior
observamos tudo que se relaciona à lei natural. Estudamos que o termo “lei natural”,
falando estrita e propriamente, se refere a um processo que envolve a razão humana e os
primeiros princípios imutáveis. Para nossa próxima discussão, onde desvendaremos o
universo do direito natural, é importante saber que quanto a estes primeiros princípios
Aquino revela que, “quanto aos primeiros princípios da lei da natureza, a lei da natureza
é totalmente imutável [...] Pode, contudo, mudar em algo particular” (S. T., I-II, Q. 94,
a. 5). Estes primeiros princípios são de ordem geral, entretanto dão surgimento a
conclusões de ordem particular. Em cada pessoa as conclusões, apesar de partirem de
uma mesma fonte, se desdobram em apreensões que não podem ser generalizadas, já
que não têm caráter de universalidade como os primeiros princípios.
Quanto aos princípios comuns da razão [...] prática, a verdade ou
retidão é a mesma em todos, e igualmente conhecida. [...] Quanto às
conclusões próprias da razão prática, nem a verdade ou retidão é a
mesma em todos, nem também nas quais é a mesma, é igualmente
conhecida. (S. T., I-II, Q. 94, a. 4)
Eis que para compreender o jusnaturalismo em Aquino se faz necessário não
confundir a primeira dimensão onde há princípios imutáveis com a segunda dimensão
onde existem conclusões provindas da lei natural. A lei natural parte de um núcleo
comum e ao se desdobrar em conclusões vindas a partir dos primeiros princípios,
caminha em sentido da sociabilidade. Enquanto é um princípio primeiro, a lei natural
não precisa se haver com a sociedade e seus instrumentos institucionais, mas quando
veste o corpo de conclusão segunda, a lei natural precisa passar pelo processo social e
político que a legitimará para seu aproveitamento dentro do universo social. A lei
57
natural para que possa surtir efeitos dentro do mundo humano e convencional deve
obter legalidade pelos processos inerentes a esta sociedade humana e convencionada.
a razão humana não pode participar do pleno ditame da razão divina,
mas a seu modo e imperfeitamente. [...] é presente em nós o
conhecimento de alguns princípios comuns, não, porém, o
conhecimento próprio de qualquer verdade [...] da parte da razão
prática naturalmente o homem participa da lei eterna, segundo alguns
princípios comuns, e não segundo direções particulares dos singulares,
que, porém, se contêm na lei eterna. E assim é necessário
ulteriormente que a razão humana proceda a algumas sanções
particulares das leis. (S. T., I-II, Q. 91, a. 3)
Aquino fulmina qualquer idéia de direito que, em nome de sua naturalidade,
possa escamotear os processos legítimos da sociedade. O direito, destarte tenha nascido
da natureza, precisa se qualificar legitimamente dentro do universo coletivo. É preciso,
portanto, proceder a uma lei concebida não como mágica, mas como lei humana. Afinal,
é uma lei humana que deve regular relações também humanas. A lei natural não pode
exercer esta função junto à sociedade. Este não é o papel social da lei natural, é sim da
lei humana. Aquino não propõe a lei natural enquanto uma fórmula mística. Ele
reconhece que os mecanismos políticos e sociais, que uma nação possui, devem em
última análise determinar o que vige ou não no ordenamento jurídico, “deve-se dizer,
portanto, que a lei escrita diz-se ser dada para correção da lei da natureza” (S. T., I-II,
Q. 94, a. 5). A postulação de existência de uma lei natural não se põe contrária ao
processo racional que a sociedade precisa estabelecer para eleger seu ordenamento.
A lei é certo ditame da razão prática. Ora, acha-se na razão prática
processo semelhante ao da especulativa: ambas, com efeito, procedem
de alguns princípios para algumas conclusões, como mais acima se
mostrou. Segundo isso, deve-se dizer que, como na razão especulativa
de princípios indemonstráveis naturalmente conhecidos produzem-se
conclusões das diversas ciências, cujo conhecimento não nos é inato,
mas descoberto por esforço da razão, assim também dos preceitos da
lei natural, como de alguns princípios comuns e indemonstráveis, é
necessário que a razão humana proceda para dispor mais
particularmente algumas coisas.
E estas disposições particulares
descobertas segundo a razão humana, dizem-se leis humanas
,
mantidas as outras condições que pertencem à razão de lei
, como
acima foi dito. (S. T., I-II, Q. 91, a. 3, grifo nosso)
58
A idéia de lei natural, em Aquino, debate a fundamentação deste processo
racional de instituição de uma legislação, visto que o campo do direito se diferencia do
campo da moral. O campo do direito é o campo das relações sociais e aí devemos estar
longe das confusões sobre este ponto. A virtude da justiça é totalmente distinta das
demais.
é próprio à justiça ordenar o homem no que diz respeito a outrem.
Implica, com efeito, uma certa igualdade, como seu próprio nome
indica, pois se diz comumente: o que se iguala se ajusta. Ora, a
igualdade supõe relação a outrem. As demais virtudes, ao contrário,
aperfeiçoam o homem somente no que toca a si próprio. Assim, pois,
nas atividades das outras virtudes, a retidão visada pela intenção
virtuosa como seu próprio só tem em conta o agente. A retidão,
porém, na ação da justiça [...] se constitui pela relação com o outro.
(S. T., II-II, Q. 57, a. 1)
Inexiste relação de direito unilateral ou subjetiva. A relação de direito é uma
relação objetiva e na sociedade. A lei para se adequar a esta situação deve ser positivada
e passar pelo processo próprio para seu devido estabelecimento dentro da sociedade, “o
nome justiça implica igualdade; por isso, em seu conceito mesmo, a justiça comporta
relação com outrem. Pois, nada é igual a si mesmo, mas a um outro. Ora, uma vez que
compete à justiça retificar os atos humanos, como já foi explicado, é necessário que essa
alteridade, por ela exigida, exista entre agentes diferentes.” (S. T., II-II, Q. 58, a. 2). É
assim que nasce a lei humana ou direito natural.
3.3.2 A instituição da lei humana
O processo que trata da transição da lei natural de sua dimensão subjetiva e
individual para a pública é discutido por Santo Tomás como trataremos a seguir. Neste
ponto encontramos uma questão basilar para seu jusnaturalismo. Afinal quando dizemos
direito estamos falando da dimensão coletiva da vida. E então nos perguntamos: como
um fenômeno que nasce da alma humana pode ser legitimado dentro do ambiente
social? Como se dá este processo? A lei natural em Aquino é compreendida como um
processo de interação entre razão e os primeiros princípios da alma humana, também se
denominando, este processo, de “sindérese”. Atentemos que é deste processo primeiro
executado pela alma humana que surgirá o elemento basilar para a pesquisa do direito: o
costume. O costume é o elemento e é a fonte para labuta em busca do direito natural:
59
Por isso, Túlio diz que a origem do direito veio da natureza, depois
algumas coisas vieram como costume por aprovação da razão,
finalmente o que veio da natureza e foi aprovado pelo costume foi
sancionado pelo medo e pela religião. (S. T., I-II, Q. 91, a. 3)
Já vimos que Aristotéles, por exemplo, também tinha o cotume como fonte
da lei natural, entretanto a perspectiva trabalhada por Aquino é de longe mais elaborada.
No Filósofo a uma mecanicidade na aceitação do costume da
pólis, o mesmo é para ele
uma fonte direta e arbitrária. Em Aquino a discussão é bem mais elaborada, o que lhe
permite que possa trabalhar também com muita consciência o processo de legitimação
desta lei no processo de transição que conduz a efetividade dentro da dimensão social.
Os primeiros princípios originam um elemento chamado costume que por si só não se
legitima enquanto norma legal. O costume não é uma norma, é a fonte de onde ela
nascerá. Aristóteles põe o costume da
pólis como elemento definidor da lei política ou
distributiva daquela
pólis, mas não revela claramente o processo de legitimação daquele
costume, que transformará uma norma costumeira em uma norma com efeito e poder
coativo. É provável que a própria estrutura da jurisdição grega que normalmente se
utilizava de normas costumeiras tenha contribuido para este suposto hiato em
Aristóteles.
Exatamente porque Santo Tomás rompe com o paradigma da norma
costumeira nos moldes aristotélicos e pensa este costume enquanto gestado pelo escopo
humano, é preciso também que ele pense agora na legitimação estrita desta norma
natural. Afinal se o costume nasce da própria condição humana dentro do mundo,
precisamos lembrar que isto é algo prático e real. Cada homem, portanto é um dínamo
neste processo. E como equacionar as partes. Não é possível que cada um possa sozinho
criar regras de direito. É preciso demarcar com clareza o que é criação individual de
cultura e o que é a normativiodade efetiva da sociedade:
parece que a razão de qualquer um pode fazer leis. [...] A lei
propriamente, por primeiro e principalmente, visa a ordenação ao bem
comum. Ordenar, porém, algo para o bem comum é ou de toda a
multidão ou de alguém que faz as vezes de toda a multidão. E assim
constituir a lei ou pertence à pessoa pública que tem o cuidado de toda
a multidão. Porque em todas as coisas ordenar para o fim é daquele de
quem este fim é próprio. (S. T., I-II, q. 90, a. 3)
Se não fosse assim, iríamos cair no equívoco de todos poderem estabelecer
leis. Qualquer um poderia alegar que a lei natural em si estabelece esse ou aquele
60
regulamento. Como seria assim uma lei escrita no coração, com o coração de todos a
dizer coisas diferentes. Seria algo totalmente inviável, por isso chamamos “lei” à lei
natural e ela não tem força de lei coativa na sociedade. O termo lei pode ser empregado
em diversos sentidos. Aquilo que chamamos lei de nosso coração ou de nosso espírito,
não é o mesmo que chamamos lei civil. A sociedade humana vive tendo por regras leis
que regulam a vida em sociedade. Estas leis que regem a vida em coletividade
compõem um universo específico que não pode ser confundido com o universo da lei do
espírito, “pela lei escrita é suprido o que falta à lei da natureza” (S. T., I-II, Q. 94, a. 5).
A promulgação da lei, portanto, se faz fundamento de sua validade e efetividade junto à
coletividade:
Para que a lei obtenha força de obrigar, que é próprio dela é necessário
que se aplique aos homens que segundo ela devem ser regulados. Tal
aplicação se faz enquanto elevada ao conhecimento deles pela própria
promulgação. Portanto, a promulgação é necessária para que a lei
tenha sua força. (S. T., I-II, Q. 90, a. 4)
Segundo Aquino o elemento humano está inserido no processo político de
gestação da lei. No primeiro momento o homem surge como fonte do costume, e agora,
aparece novamente ao participar da legitimação desta norma socialmente. Em Aquino
este processo não é mecânico, é preciso que a lei seja instituída para que ganhe força
coativa. A participação humana é imprescindível.
Esta diferenciação já mencionada entre as dimensões do fenômeno
jusnaturalista é fundamental para entender um detalhe que tem causado muita polêmica:
a questão da imutabilidade ou não da lei natural deve ser abordada aqui em função da
grande confusão sobre o tema. Longe de qualquer confusão sobre isto, Santo Tomás nos
ensina, e nós já vimos no início deste tópico, que a lei natural em sua raiz primária é
imutável, pois é um fenômeno genérico e natural. Entretanto seu fruto legal, aquilo que
nasce enquanto conclusão e foi aceito socialmente é sim mutável, “o que é natural a um
ser dotado de uma natureza imutável há de ser necessariamente o mesmo, sempre e em
toda parte. Ora, a natureza humana é mutável, por isso, o que é natural ao homem pode
falhar algumas vezes.” (S. T., II-II, Q. 57, a. 2). Ao passar para esfera de interferência
nos interesses públicos a lei abandonará todas as características da primeira dimensão.
A esfera coletiva tem uma lógica própria, um sentido próprio de legitimidade.
61
A lei natural é uma participação da lei eterna, como acima foi dito, e
assim persevera imóvel, e isso tem da imobilidade e perfeição da
razão divina, que instituiu a natureza. Ora, a razão humana é mutável e
imperfeita. E assim sua lei é mutável. – Ademais a lei natural contém
preceitos universais, que permanecem sempre, e a lei imposta pelo
homem, porém, contém alguns preceitos particulares, de acordo com
os diversos casos que surgem. (S. T., I-II, Q. 97, a. 1)
Esta lei mutável também é falível. Não é intocável. Não expressa nenhum
tipo de ordenamento místico infalível. É um instituto eminentemente humano e não se
baseia em processos acima ou fora da sociedade, “as leis humanas não podem ter aquela
infalibilidade que têm as conclusões demonstrativas das ciências. Nem é necessário que
toda medida seja de todo modo infalível e certa, mas segundo é possível em seu
gênero.” (S. T., I-II, Q. 91, a. 3). Eis aqui o direito que foi gerado desde aquele primeiro
momento da lei natural. Ele principiou lá, mas aqui ele é algo eminentemente humano.
Não há sobre ele qualquer tipo de primazia que lhe venha alienar da vida real do
homem. É o homem que lhe aprova e é ele mesmo que lhe refuta. E como veremos a
seguir a prerrogativa do indivíduo em poder refutar o direito posto é bastante larga em
Aquino.
3.3.3 Sobre a ilegitimidade da lei injusta
Um dos critérios indispensáveis para a devida validade da norma jurídica é o
da justiça, este é um dos fundamentos da tese jusnaturalista, significando que, o
processo de instituição não atenderá apenas a critérios formalistas. A lei para adentrar a
legalidade tem que em última análise expressar justiça, pois lei injusta não é lei.
Refutando a premissa, carregada de valores ideológicos, de que toda lei e qualquer lei é
a expressão da justiça, Santo Tomás adverte que: “As leis impostas humanamente ou
são justas, ou injustas. Se são justas, têm força de obrigar no foro da consciência [...]
podem, contudo ser injustas” (S. T., I-II, Q. 92, a. 2).
Podemos perceber a intenção do jusnaturalismo tomista em revelar, até
mesmo, a relação que há entre setor dominante e ordenamento jurídico. Esta relação em
nenhum momento é camuflada ou escamoteada por Aquino: “A lei tirânica, uma vez
que não é segundo a razão, não é simplesmente lei, mas antes certa perversidade da lei.”
(S. T., I-II, Q. 92, a. 2). Ele denuncia o legalismo daqueles que usam o ordenamento
como manto de sua tirania e injustiça: “Não tem, com efeito, da razão de lei senão que é
62
ditame de alguém que preside sobre os súditos, e pretende que os súditos sejam bem
obedientes à lei, isto é, que sejam bons, não absolutamente, mas em ordem a tal
regime.” (S. T., I-II, Q. 92, a. 2). Santo Tomás tem mesmo uma opinião bastante
contundente quanto às leis que carecem de fundamento de justiça. Para ele tais leis não
tem poder de obrigar os cidadãos a agir. Ele defende a possibilidade do descumprimento
de tal legislação.
quando alguém que preside impõe leis onerosas aos súditos, não
pertinentes a utilidade comum, e mais à própria cobiça e glória; ou
também em razão do autor, como quando alguém legisla além do
poder que lhe foi atribuído; ou também em razão da forma, por
exemplo, quando de modo desigual as obrigações são distribuídas à
multidão, mesmo se se ordenam ao bem comum. E essas são mais
violências que leis, pois, como diz Agostinho, “Não parece ser lei a
que não for justa”. [...] em tais coisas o homem não é obrigado a
obedecer à lei (S. T., I-II, Q. 96, a. 4)
Eis o paradoxo fundamental para a tese naturalista. A lei escrita tem uma
autoridade por ser um instrumento social, entretanto este instrumento não tem valor
absoluto, não tem valor em si mesmo. É um instrumento que deve ser referenciado com
a lei natural, que precisa prestar contas à sociedade em um raciocínio amplo que
envolve um juízo de valor, que considera elementos que vão muito além da mera
vontade ou interesse do governante. Este juízo será embasado em uma observação
ampla dos valores e dos costumes sociais e culturais. O jusnaturalismo na verdade
trabalha com estes dois universos: critérios para o surgimento da lei e critérios para sua
legitimação social. A lei para ter validade deve ser legitimada, mas esta legitimação não
envolve apenas a esfera formalista. Envolve a análise do conteúdo ético daquilo que foi
legitimado e aí voltamos novamente nosso olhar para a fonte de onde a lei nasce, sua
raiz racional:
A lei escrita contém o direito natural, mas não o institui; pois, ele não
tira força da lei, mas da natureza. Quanto ao direito positivo, a lei
escrita o contém e o institui, conferindo-lhe a força da autoridade. Eis
o por quê, se faz necessário que os julgamentos sejam proferidos de
acordo com as leis escritas. Do contrário, se desviaria seja do direito
natural seja do direito positivo. (S. T., II-II, Q. 60, a. 5)
É a relação que a lei positivada deve continuar guardando com sua fonte
original que norteia o critério de justiça da norma de direito, “toda lei humanamente
imposta tem tanto de razão de lei quanto deriva da lei da natureza.” (S. T., I-II, Q. 95, a.
63
2). Podemos conceber esta relação como assemelhada a uma relação dialética. Onde o
produto gerado tem papel distinto de sua fonte, mas precisa entretanto continuar em
harmonia com sua fonte originária para que guarde sentido no mundo. Outro critério
basilar para Santo Tomás é que a lei deve sempre ser a expressão do bem comum. Esta
tese é coerente com sua definição de lei, “uma ordenação da razão para o bem comum,
promulgada por aquele que tem o cuidado da comunidade.” (S. T., II-II, Q. 90, a. 4). É,
este, sem dúvidas, um critério substancial para uma segura análise sobre a justiça ou não
do direito.
Já está bastante claro que da lei natural deriva o direito humano. Vejamos
agora que esta lei humana surge em dois modelos distintos. Neste sentido Santo Tomás
postula que, “é da razão da lei humana que seja derivada da lei da natureza [...] de
acordo com isso, divide-se o direito positivo em direito das gentes e direito civil,
segundo os dois modos pelos quais algo deriva da lei da natureza” (S. T., I-II, Q. 95, a.
4). Ao direito civil pertencem, “Aquelas coisas [...] que derivam da lei da natureza, a
modo de determinação particular.” (S. T., I-II, Q. 95, a. 4).
Podemos então comparar o direito civil de Aquino com o direito positivo de
Aristóteles, que é aquele que, segundo Aristóteles não guarda importância como é
determinado, mas depois de determinado deve ser respeitado. O direito civil de Aquino
portanto tem um campo de abrangência similar. Dá conta de resolver situações
específicas e legisla sobre questões de pouca importância social, pois as questões de
grande apelo social são contidas sob o título de direito das gentes.
3.3.4 O direito das gentes
Após estudarmos a relação entre o direito civil de Aquino e o direito
positivo de Aristóteles, veremos a relação entre o conceito de lei política ou natural
deste último com aquilo que o primeiro conceitua enquanto direito das gentes ou direito
natural. O Aquinate aceita a proposição Aristotélica de lei política: “o Filósofo
estabelece duas espécies de justiça, uma que se dirige as distribuições, outra as
comutações.” (S. T., II-II, Q. 61, a. 1). E explica esta idéia dizendo que a, “Justiça
comutativa [...] visa o intercâmbio mútuo entre duas pessoas. A outra relação é do todo
com às partes; a ela se assemelha a relação entre o que é comum e cada uma das
pessoas. A essa segunda relação se refere a justiça distributiva que reparte o que é
comum de maneira proporcional.” (S. T., II-II, Q. 61, a. 1). Tomás de Aquino tem uma
64
visão geral da tese de Aristóteles. Ele conhece as implicações políticas da tese
aristotélica. A relação entre o povo e o Estado não é qualquer relação, ela é mediada por
elementos da dimensão política. Tomás de Aquino demonstra com isso sua total
percepção que a vida do Estado em nada se parece coma relação de uma grande família.
A vida em sociedade é infinitamente mais complexa que vida em uma estrutura simples
como a de uma família. Estas relações precisam ser mediadas por institutos racionais
para que haja o devido equilíbrio. É imerso neste sentido que podemos conceber a tese
elaborada por Santo Tomás sobre direito das gentes.
Mas é preciso fazer uma distinção entre o conceito utilizado por Aquino de
direito das gentes e o conceito que foi, em outra época, moldado enquanto direito
internacional. O direito das gentes, a que Aquino se refere, “é entendido e explicado
aqui como um direito consuetudinário, que se supõe universal, compreendendo os usos
e práticas comuns aos diferentes povos. Não poderíamos identificá-lo com a noção
moderna de direito internacional” (OLIVEIRA, 2005, p. 51). É possível que, por reger
também os direitos relativos ao comércio o direito das gentes tenha ganhado ao longo
do tempo sua característica de direito internacional, ou seja, direito entre os povos, idéia
surgida posteriormente, com Hugo Grócio e que não representa o conceito pensado por
Santo Tomás:
Essa expressão exige alguma explicação em virtude de sua
ambigüidade atual. Em nossos dias, com efeito, ‘direito das gentes’
designa uma espécie de direito internacional não escrito,
consuetudinário, direito que rege as relações entre nações e não entre
indivíduos. Já para Sto. Tomás, a expressão, que ele retomou do
direito romano por intermédio de Sto. Isidoro e dos Canonistas,
designa praticamente a forma de direito natural explicitada por uma lei
humana, o direito natural traduzido em uma legislação humana como
em uma de suas conclusões ; portanto, é ao mesmo tempo lei natural e
humana. (ALBERT, 2005, p. 582)
O direito das gentes que é objeto da laboração de Tomás de Aquino era uma
espécie de direito costumeiro ou consuetudinário que tratava dos direitos do indivíduo,
montando-se sobre os usos e práticas comuns aos diferentes povos. Este direito nasceu
como uma necessidade própria do império romano que aplicava aos seus cidadãos o
chamado “
jus civile” ou direito civil. Entretanto restava ainda um grande contingente de
pessoas que mesmo dentro do império romano não possuía o título de cidadão. Para este
imenso grupo é que importava a idéia de
“jus gentium” ou direito das gentes, que, foi,
portanto um passo no sentido da inclusão e do acesso básico de populações inteiras a
65
ordem jurídica romana. Ainda que incipiente esta inclusão se fez importante do ponto de
vista histórico, pois, além de garantir o mínimo de dignidade para setores do povo, foi
um conceito utilizado por Santo Tomás para o reconhecimento do homem como sujeito
de direitos.
Este instituto tratava principalmente sobre questões básicas, já que se dirigia
a um contingente de pessoas que não possuíam as prerrogativas dos cidadãos romanos,
de fato, os setores mais populares do império, aqueles que eram facilmente aviltados em
seus direitos: “Pertencem ao direito das gentes aquelas coisas que derivam da lei da
natureza como as conclusões dos princípios, como as compras justas, as vendas, e outras
coisas semelhantes, sem as quais os homens não podem conviver uns com os outros, o
que é da lei da natureza” (S. T., I-II, q. 95, a. 4). Estes quesitos elementares precisavam
de amparo legal e Aquino os referenda por meio do direito das gentes ou direito natural,
“O direito das gentes é o direito natural [...] Aquilo que a razão natural constituiu entre
todos os homens é observado por todos os povos, e se chama direito das gentes” (S. T.,
II-II, Q. 57, a. 3).
Este entendimento de Santo Tomás é bastante significativo no panorama
histórico do direito. Aquino aponta desta forma que a legislação de qualquer Estado
deve, para possuir legitimidade, incluir estes direitos básicos que por natureza as
camadas mais populares tem e não lhes podem ser negados, já que, “se algo [...] se opõe
ao direito natural não se pode tornar justo por disposição da vontade humana.” (S. T., IIII,
q. 57, a. 2). Trata-se de um esboço dos direitos do homem, algo que aponta para um
sentido abrangente ou universal destes direitos, “o direito das gentes é de algum modo
natural ao homem, segundo é racional, enquanto deriva da lei natural a modo de
conclusão, que não é muito afastada dos pricípios. Donde, facilmente, em tal os homens
consentiram.” (S. T. I-II, Q. 95, a. 4). O direito das gentes é mais propriamente chamado
de direito natural. Como explica Tomás de Aquino acima, ele não é muito afastado dos
primeiros princípios, significando que o direito das gentes é pródigo em autenticidade e
representatividade enquanto é um costume amplamente reconhecido e aceito pela
comunidade.
Ele guarda em sua essência um sentido forte de justiça. Esta
representatividade social dá ao direito das gentes a primazia de ser identificado mais
proximamente com o ideal de direito natural. Dada sua representatividade dentre a
comunidade e seu caráter de relevância social ganha no entendimento de Aquino à
garantia de aplicação. Este direito resguarda o bem do individuo. Seus direitos, ou seja,
66
o direito das gentes, por representar aquilo que a sociedade entendia como justiça do
povo em geral, não necessitaria de uma promulgação especial, “A razão natural dita o
que pertence ao direito das gentes, levando em conta sua afinidade com a equidade. Por
isso, esses pontos do direito das gentes não precisam de uma instituição especial, mas
são estabelecidos pela própria razão natural” (S. T., I-II, Q. 57, a. 3). Para Santo Tomás
é a razão natural que concebe o homem como sujeito de direitos. Antes ele nos havia
ensinado que a lei precisa de instituição, pois a lei é algo da esfera humana. O direito
das gentes não precisa desta instituição porque ele é o direito inerente ao homem, “ele
não depende do Estado” (DEL VECCHIO, 1957, p. 231). É a diretiva básica do
jusnaturalismo, a qual defende existir uma lei essencial e natural que não pode ser
fraudada nem abolida por mãos humanas. Para o Estagirita esta era a lei constitucional
da
pólis. Já o Doutor Angélico, defende que esta lei não é voltada para a cidade, mas
para o homem, o direito aqui está profunda e umbilicalmente ligado à condição humana.
Eis aqui uma das sementes que ajudarão a germinar na história humana a idéia dos
direitos e garantias inatas ao homem.
67
CONCLUSÃO
Estudamos o período arcaico grego e detectamos, neste, a gênese do
jusnaturalismo. A formação da
pólis com sua complexidade trouxe ao universo grego a
idéia de isonomia. Ligada à isonomia surgia a tese de concórdia. Se a isonomia é o
sentimento de igualdade entre os cidadãos da
pólis, a concórdia, por sua vez, trata do
desdobramento desta igualdade dentro do universo da
pólis. No exemplo emblemático
de Sólon, este se recusa, em seu governo em Atenas, a se aliar a uma classe específica.
Aliar-se seria um caminho convencional e conhecido, que lhe garantiria facilmente uma
maior governabilidade. Ele não segue este atalho em nome de algo mais difícil de se
construir, um acordo amplo e geral entre os membros da
pólis. O bem da cidade é a
união de todos os setores da cidade em torno da chamada igualdade geométrica. No
pensamento dos arcaicos a
pólis expressava a mesma ordem do cosmos.
O sentimento de igualdade expresso na concórdia da
pólis também significa,
por conseqüência, um anteparo ao poder tirânico, ou seja, a lei natural é uma lei
transcendente que refuta a usurpação do bem coletivo. Vimos que este sentido limitador
da lei natural compõe, digamos assim, certa essência. Esta essência é a proteção de um
bem da vida. Este bem da vida que a lei natural protegia no período arcaico era a idéia
de isonomia. Este bem era identificado na coletividade por meio da concórdia e
materializado no
nomos.
Basicamente a tese de lei natural de Aristóteles está vinculada a idéia vinda
do período arcaico, apesar de que modificará, em parte, toda aquela primeira
formulação. O Estagirita estudou diversas constituições, e a partir de seu estudo
delimitou a tese de lei natural, de modo que esta não mais se identificava com o
nomos
em sentido amplo, como acontecia no período arcaico. A lei natural era sintetizada na
lei política ou constitucional da
pólis que tratava da divisão do poder político entre os
cidadãos da
pólis. Afinal, nada mais adequado para assegurar a isonomia entre os
cidadãos do que tratar diretamente sobre esta divisão do poder na cidade. Aristóteles
com sua lei natural ou política está fundamentalmente ligado a uma tese que alicerça seu
pensamento: a idéia sobre a primazia da
pólis. A ótica em que o Estagirita concebe o
bem ser protegido pela lei natural mais uma vez reproduz o pensamento arcaico do bem
coletivo. Aristóteles identifica na
pólis o centro da vida, gestando-se disto uma forma de
ver o homem que não lhe prioriza nem lhe enfatiza em sua individualidade. Não é
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Aristóteles, portanto que irá gravar na lei natural a característica fundamental de defesa
dos direitos inatos ao homem, entretanto, ele dá uma contribuição fundamental para isto
a partir do momento que junto com Platão elabora a discussão sobre a natureza racional
do homem. É tendo por coração a discussão sobre a racionalidade humana que a idéia
jusnaturalista chegará a sua versão consagrada historicamente.
A nova tônica passará a girar em torno da defesa do bem individual ou
garantia dos direitos inerentes ao homem. Tal construção teórica passa inexoravelmente
pelo pensamento de Santo Tomás de Aquino. Ele tem pioneirismo em conceber um
sistema coerentemente elaborado de lei natural. Neste sistema o prisma passa ser a
defesa do bem da pessoa e não mais do bem coletivo como no primeiro modelo. Esta
transição conceitual envolve uma série de fatores relacionados aos pressupostos
antropológicos sobre os quais se montam as teses jusnaturalistas. Aristóteles partia de
uma visão da
pólis como o centro. Não é possível identificar no Estagirita uma
desvalorização do homem, mas também não podemos ver nele a necessária centralidade
que o humano precisaria ter para ser reconhecido em sua universalidade. A antropologia
nascida da teologia cristã é bem mais favorável para que Santo Tomás possa ver o
homem como elemento central da sua concepção de lei natural. A razão prática é
reinterpretada por Aquino em novo sentido. Aristóteles não explicou a contento por que
o costume, fonte da lei natural, deveria exercer papel tão decisivo dentro da cidade.
Aquino também utiliza o elemento costume enquanto fonte da lei, entretanto ele
esclarece que este costume nasceu primeiro do homem. É do homem, em um processo
denominado de “sindérese”, que o costume nasceu. Por isso este costume é legítimo
enquanto lei natural, mas para se tornar direito natural e adquirir força coativa mais uma
vez ele passará pelo homem que deverá promulgá-lo e legitimá-lo. Aquino divide então
o jusnaturalismo em dimensões integradas em um sistema. A parte atinente aos
princípios inerentes ao homem e sua racionalidade ele chama de lei natural e a parte
relativa a lei propriamente estabelecida e coativa ele denomina direito natural. Este
direito natural se divide em direito civil e direito das gentes.
O direito natural em Aquino é principalmente identificado com o direito das
gentes que é um primeiro esboço, uma primeira tentativa de tratar aquilo que no futuro
viria ser conhecido como os direito e garantias do indivíduo. Em Aquino o direito das
gentes tem características de proteção a um bem da vida, que é a essência do
jusnaturalismo. Na primeira versão como vimos um bem coletivo, a isonomia e agora,
na versão tomista o bem da vida protegido é o bem individual. Direitos básicos do
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homem a serem respeitados por todos os povos. É possível identificar semelhança entre
o jusnaturalismo tomista e o modelo que foi consagrado pela história do ocidente. O
formato que propugna pela defesa de direitos inerentes ao homem e que teve seu ápice
com o advento do moderno constitucionalismo que inscreveu nas cartas constitucionais
estes citados direitos do homem ou da pessoa humana.
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